Este texto foi escrito no dia 8 de janeiro de 2015.
Nesta manhã, doze pessoas estão mortas e não deveriam estar.
Nove jornalistas, um trabalhador de serviços gerais e dois policiais foram mortos na sede do jornal francês Charlie Hebdo na última quarta-feira. Onze outras foram feridas; quatro estão em condições críticas enquanto escrevo esta coluna.
A lista de mortos é a seguinte (de acordo com o jornal The Guardian):
Stéphane “Charb” Charboniier, 47, cartunista e editor do Charlie Hebdo.
Jean “Cabu” Cabut, 76, cartunista-chefe do Charlie Hebdo
Geroge Wolinski, 80, artista nascido na Tunísia
Bernard “Tignous” Verlhac, 57, membro do grupo Cartunistas pela Paz
Bernard Maris — conhecido como “Tio Bernard” –, 68, economista e colunista do Charlie Hebdo
Philippe Honoré, conhecido simplesmente como Honoré, 73, cartunista do Charlie Hebdo desde a fundação do jornal
Michel Renaud, ex-jornalista e conselheiro político, visitava o Charlie Hebdo
Mustapha Ourrad, revisor de textos do Charlie Hebdo
Elsa Cayat, analista e colunista do Charlie Hebdo
Frederic Boisseau, trabalhador de serviços gerais do edifício
Franck Brinsolaro, 49, policial apontado para garantir a segurança de Charb e pai de uma menina de um ano de idade
Ahmed Merabet, 42, policial muçulmano francês e membro da 11ª brigada de arrondissement
Você provavelmente lerá inúmeros editoriais falando da liberdade de expressão e de imprensa. Até o jornal local do meu estado, The Oklahoman, fez uma pausa nas suas publicações convencionais para publicar um editorial em solidariedade com o Charlie Hebdo.
Você também lerá vários artigos com análises de comentaristas de todas as estirpes que se preocupam se isso colocará mais gasolina na fogueira do nacionalismo francês e dos sentimentos anti-islâmicos, incensados pelo ataque ao jornalismo, talvez até mesmo acrescentando um pouco de islamofobia ao discurso corrente.
Todos esses colunistas, de esquerda e de direita, libertários ou estatistas, errarão o alvo.
Apesar de tudo o que se fala sobre o Charlie Hebdo — seu antiautoritarismo, seu comprometimento com a liberdade de expressão, sua coragem e bravura quando deparados com o fundamentalismo islâmico, sua posição igualitária –, o que ninguém parece perceber é que o ataque ao Charlie Hebdo pouco teve a ver com o Islã ou mesmo com religiosidade.
O ataque contra o Charlie Hebdo foi tão político quanto as declarações dos presidentes Obama e Hollande que condenaram as ações.
Vaneigem escreveu certa vez: enquanto o poder nos esfola vivos, ele nos persuade de que nos esfolamos uns aos outros.
O Charlie Hebdo às vezes ridicularizava os governantes franceses, às vezes ria do poder, mas jamais o desafiou. Era um jornal que estava perfeitamente disposto a satirizar, desde que pudesse abrir fogo cegamente em todas as direções. Por isso, era uma ferramenta útil do poder.
Não se deve interpretar o que digo aqui como desrespeito pelos mortos. Sempre que um jornalista, chargista ou fotógrafo é morto, é uma grande e profunda tragédia que enche o meu coração — e os corações dos meus colegas jornalistas — de raiva e angústia. Este momento não é diferente. Estamos em uma área que leva a sério a ideia de que “o ataque a um é um ataque a todos”. O reconhecimento de que um veículo — no caso, o Charlie Hebdo — servia aos interesses do poder não reduz a dor ou diminui as perdas. O mesmo vale para as mortes, neste caso, dos policiais que estavam na cena da tragédia. Isso não muda o propósito universal da polícia: servir ao poder.
De acordo com o The Guardian, um dos principais suspeitos do ataque, Chérif Kouachi, 32, foi preso em 2008 acusado de terrorismo por “ajudar a levar soldados para a insurgência iraquiana”. Ele “afirmou na época que estava ultrajado com a tortura de presos iraquianos na prisão americana de Abu Ghraib, perto de Bagdá”.
Testemunhas disseram que um dos suspeitos proclamou que era da Al-Qaeda da Península Arábica. Essa célula da Al-Qaeda está sediada no Iêmen, que tem sido sujeito nos últimos anos a inúmeros ataques americanos com drones, resultando na morte de homens, mulheres e crianças. Se Kouachi e seu irmão, Said, de fato forem os culpados pelo ataque e fizerem parte da Al-Qaeda da Península Arábica, é razoável deduzir que os ataques perpetrados por forças americanas e de coalizão possam ter sido um fator de motivação. É claro, estou apenas presumindo. Por ora, as motivações dos assassinos são “o que quer que pensarmos que sejam”.
Ontem Laurent Joffrin, o diretor editorial do jornal francês de esquerda Libération, similar ao The Guardian, observou: “Os terroristas não atacaram os ‘islamofóbicos’ como inimigos dos muçulmanos, aqueles que falam o tempo inteiro da ameaça islamista. O alvo deles foi o Charlie“.
Contudo, os reacionários hoje, como a Frente Nacional e outros grupos de direita nacionalistas, estão tentando se catapultar ao alto escalão da política francesa com o ataque do Charlie Hebdo. Será que o jornal falava por eles?
A última capa do Charlie Hebdo antes do incidente era uma sátira ao próximo livro do escritor francês Michel Houellebecq, que imagina uma França tomada por uma “Fraternidade Muçulmana”. Relatos contam que Charbonnier tentava puxar o jornal de volta a suas raízes de esquerda, especialmente depois do bombardeio de 2011 a sua sede. Se isso é verdade, por que a Frente Nacional tentou usar o ataque como arma eleitoral?
Porque as imagens que o Charlie às vezes publicava, aquelas rotuladas como islamofóbicas e racistas, têm tanta audiência quanto as imagens que atacam os ricos, poderosos e preconceituosos. Porque quando algo como isso acontece, toda a lógica contorcionista dos nazistas modernos é justificada.
Este ataque ocorreu em um país cujos últimos presidentes assinaram leis para ativamente proibir aspectos da vida muçulmana e coibir a liberdade de expressão. Ele aconteceu em uma Europa que crescentemente expõe seus sentimentos tóxicos anti-islâmicos e anti-imigração e onde, neste mês inclusive, o estado ordenou que professores de creches e pre-escolas passassem a vigiar crianças muçulmanas. Ele ocorreu em um mundo que está em guerra há duas décadas. O trabalho do Charlie não foi feito num vácuo. Ele serviu e continua a servir ao poder.