É isso que a maioria das pessoas provavelmente pensa que os anarquistas defendem: a sociedade da forma que já existe, mas sem a polícia.Esse é um argumento muito comum e a exposição de Price é a melhor que já vi.
O que ocorreria (se essa transformação ocorresse magicamente) seria a recriação do estado pelos capitalistas — isso seria tão provável quanto a ruína do capitalismo. As grandes corporações logo estabeleceriam suas forças policiais (“forças de segurança”, policiais de aluguel) e as fundiriam ou permitiriam que as mais fortes se sobrepusessem às outras. Enquanto isso, a Máfia organizaria rapidamente suas próprias forças. Uns ou outros (ou uma combinação deles) se tornariam o novo estado, ou pelo menos tentariam fazê-lo.
O fato é que o estado e o capitalismo estão completamente interligados, junto com todos os outros sistemas de opressão (racismo, sexismo, nacionalismos, etc). Eles se complementam e se apoiam em todo um sistema de opressões. Eu penso neles como um jogo de pega-varetas. Algumas varetas estão mais centralizadas na pilha (particularmente o estado e o capitalismo), mas todos se complementam. Todos devem ser derrubados e desmantelados.
Primeiramente, eu devo dizer que não vejo muita utilidade em imaginar um cenário de abolição do estado, antes de mais nada. Afinal, a não ser como experimento mental, a ideia de um “botão mágico” para abolir o estado é estúpida. E, como afirma Price, o cenário é irrelevante precisamente porque o estado, o capitalismo e outros aspectos do sistema estão completamente integrados. Como ele, eu vejo a estrutura do sistema como um jogo de pega-varetas. O estado e o capitalismo são os mais centrais, mas eu iria além e diria que o estado é mais central que o capitalismo e o capitalismo seria fatalmente enfraquecido sem o estado.
A proposta um tanto jocosa de “ver se o capitalismo sobrevive até o amanhecer”, acredito eu, não era uma proposta de deixar a economia da forma como ela existe menos o estado, mas era uma sugestão de que sem a intervenção constante do estado, as grandes empresas definhariam como uma lesma com sal nas costas.
Eu acredito que tanto o capitalismo corporativo e o estado, da maneira que o conhecemos, são parte do mesmo sistema moribundo e que cairão juntos. O capitalismo morre porque depende cada vez mais do estado para subsidiar seus insumos e para proteger seus monopólios como a “propriedade intelectual”, sobre a qual seus modelos de negócio dependem cada vez mais. E o estado está morrendo porque a quantidade de capital necessária para esses subsídios cresce mais do que ele é capaz de prover, levando-o à falência; porque a tecnologia torna a proteção desses monopólios muito mais difícil; e porque a fase cultural de transição associada à comunicação em rede está destruindo o consenso sobre o qual a aura de legitimidade do estado depende.
Também considero o cenário que Price coloca, em que o capitalismo reconstitui o estado através de forças de segurança privadas, como altamente improvável. primeiramente, o capitalismo não surgiu sem a existência prévia do estado e sem o uso de seu poder para desenvolvê-lo. Na Europa, isso se deu com o cercamento dos campos abertos e pastos comuns, com o domínio das cidades livres por monarquias absolutas com exércitos com armas de fogo, a criminalização da ajuda mútua, da livre associação e da livre movimentação por trabalhadores. No resto do mundo, o que ocorreu foi a transferência do controle de todo o Sul para mãos europeias, a expropriação de todas as suas terras para a produção para exportação, a extração de suas riquezas minerais, a escravização de suas populações e a supressão da indústria doméstica nas colônias.
Em segundo lugar, o capitalismo já está morrendo, apesar da existência do estado, porque o crescimento de suas demandas por subsídios já ultrapassaram a capacidade que o estado tem para provê-los.
O objetivo do estado capitalista é a externalização dos custos, que são repassados aos pagadores de impostos. Várias categorias de propriedade (cujos custos de exclusão de ocupantes excedem a receita provável da propriedade) são apenas possíveis porque são custeadas pelos pagadores de impostos. O capitalismo em geral depende de externalidades — da externalização de custos e riscos sobre os pagadores de impostos, em vez de pagá-los através das receitas. O capitalismo é lucrativo somente porque seus custos de operação e riscos são socializados pelo estado e sua extração de rendimentos privada é protegida pelo estado. Se o capitalismo tivesse que operar através de suas próprias receitas, ele não seria mais o capitalismo.
Os subsídios e externalidades dependem da existência de um estado territorial financiado com dinheiro que não seja o de seus beneficiários corporativos — ou seja, que seja capaz de extrair rendimentos de sua base de impostos.
Assim, para que essas forças de polícia corporativas e militares fossem tão efetivas quanto um estado capitalista, elas teriam que ser capazes de garantir um controle territorial suficiente para extrair rendimentos de pagadores de impostos para financiar suas ações de polícia, que não poderiam ser custeadas pelas receitas corporativas.
Enquanto isso, os custos reais dos subsídios, da execuções exógenas e de todas as outras formas de socialização de custos levam ao que James O’Connor chamou de “crise fiscal do estado” e tornam o capitalismo insustentável.
A manufatura em grande escala, apesar do que afirmam os propagandistas da produção em massa como Schumpeter, Galbraith e Chandler, é geralmente menos eficiente que a produção em pequena escala mais próxima dos nódulos de consumo. Ela só é capaz de permanecer em funcionamento porque não opera com suas próprias receitas e porque o estado criminaliza boa parte da concorrência que é mais eficiente. Uma vez que a manufatura e a agricultura em grande escala do capitalismo buscam um modo de crescimento que causa desperdícios, graças à ampla adição de insumos subsidiados ao invés do aumento da eficiência do uso dos insumos existentes, os subsídios estatais criaram um loop de feedback positivo que fez com que a demanda por insumos subsidiados tenha crescido mais rápido do que a capacidade do estado de se apropriar de dinheiro para mantê-los. Esse mau uso dos insumos inclui o uso de matérias primas obtidas através do colonialismo e do neocolonialismo, da apropriação pelo governo de depósitos de petróleo e minérios dentro do país e de acesso preferencial pelo agronegócio a grandes extensões de terras expropriadas. Ele também inclui, porém, a crescente socialização dos custos de treinamento laboral, pesquisa e desenvolvimento e distribuição de longa distância, além de limitações de responsabilização criminal e civil de corporações — a lista é interminável.
Além disso tudo, ocorrem outras crises, como as tendências crescentes de sobreacumulação e subconsumo, que requerem enormes gastos estatais para absorver os investimentos de capital excedentes e utilizar a capacidade industrial e constantes guerras para abrir os mercados estrangeiros para a exportação do capital excedente. Os déficits crônicos também são cada vez mais necessários para aumentar a demanda agregada e manter os níveis de preço para o capital inativo, financiando o déficit governamental com títulos estatais de retorno garantido.
Tudo isso está levando o estado à falência.
Portanto, se o capitalismo corporativo está morrendo agora devido aos custos insustentáveis de seus subsídios estatais, não seria de se esperar que os requisitos de capital para recriar o sistema, com a mesma base territorial de pagadores de impostos, fossem ainda maiores? Se um estado financiado por impostos é incapaz de defender os monopólios de patentes e direitos autorais que são a maior fonte dos rendimentos corporativos, como as gravadoras e a Microsoft protegeriam uma legislação como a DMCA com dinheiro próprio indo para o financiamento policial? E quanto à necessidade de reduzir custos de transação legais pela recriação de toda a aura de legitimidade e do aparato de reprodução cultural?
Vi algumas vezes alguns apontarem para a Companhia das Índias Orientais como contraexemplo, mas acredito que as ferramentas de resistência em rede, armas de negação de área baratas e a propriedade disseminada de armas de fogo já deslocaram a vantagem de combate para as forças de defesa desde o século 17. Como exemplo, podemos observar que o império mais poderoso da história deixou o Iraque porque estava sendo exaurido por explosivos improvisados baratos. Quem a Halliburton, a Blackwater e a Pinkerton chamarão como reforço quando seus mercenários forem recebidos por ainda mais bombas caseiras, drones impressos em 3D e mísseis antinavais Sunburn destruindo seus porta-aviões? Quem foi que chamaram como reforço na última vez em que seus mercenários foram queimados vivos em Fallujah? Para usar uma expressão de Steve Earle, eles nunca vão voltar de Copperhead Road.
E a Máfia não é realmente um modelo plausível para a reconstrução do estado, porque o crime organizado depende, para sua própria existência, de um estado prévio que criminalize os bens que ele comercialize. Se todas as atividades consensuais como o uso de drogas e o trabalho do sexo fossem legais, qual seria sua fonte de receita? Assim, voltando ao meu ponto sobre o deslocamento tecnológico em favor de alternativas populares de autodefesa, mesmo em áreas do México em que os cartéis de drogas agem em conluio com os agentes dos governos locais, o movimento de autodefesa já teve grandes sucessos em expulsá-los de suas comunidades.
Se o capitalismo estatal for à falência e morrer por conta de suas crises de insumos e recursos, eu não vejo como as corporações conseguiriam driblar a segunda lei da termodinâmica.