Na última terça-feira (12), o então candidato à presidência Eduardo Campos dava entrevista ao Jornal Nacional. Dos quinze minutos que passou respondendo perguntas, ao menos dez foram gastos falando sobre a presença de sua família dentro do aparato estatal. O restante foi composto de banalidades do naipe de “Não vamos desistir do Brasil”. Na quarta (13), pela manhã, o jato particular de Campos caía em Santos e matava o candidato e seus assessores, além dos pilotos do avião. Sete vítimas.
A violência da queda foi grande a ponto de atrasar o transporte dos restos mortais de Eduardo Campos para Recife, Pernambuco, estado que governou nos últimos 8 anos. Seu velório foi televisionado e espetacularizado durante todo o domingo. Seu desempenho sofrível na entrevista de terça-feira foi esquecido, mas seus semipensamentos foram elevados a slogan. “Não vamos desistir do Brasil” foi um chavão amplamente compartilhado e explorado, enquanto muitos pernambucanos nas ruas cantavam “Eduardo/guerreiro/do povo brasileiro” durante o velório.
Talvez seja inevitável que a morte de um político expressivo seja explorada de maneira sórdida pelo exército de interessados em se beneficiar de parte de sua memória. Eduardo já foi lembrado como uma “liderança promissora”, um “negociador”, um “estadista” que “transcendia divisões partidárias”. E isso tudo é mentira. Por isso talvez seja mais necessário ainda lembrar o que a entrevista de terça-feira de fato mostrou o que Eduardo Campos era: um político da velha guarda, ligado ao velho sistema e à velha elite, ao velho capitalismo de compadrio; um coronel personalista na tradição nordestina de fazer política.
O poder e as instituições tendem a se perpetuar e a frustrar as tentativas de outsiders de fazerem mudanças em suas estruturas engessadas. Mas Eduardo não era um outsider. Era alguém confortavelmente posicionado dentro do poder, onde foi colocado jovem por seu avô, o ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes. Eduardo não tentava subverter qualquer estrutura, mas colocá-las a seu serviço.
No governo estadual, estão presentes “pelo menos uma dezena” de parentes seus ou de sua mulher. Tendo composto a base aliada do governo federal por anos, Eduardo Campos fez campanha bem sucedida pela nomeação de sua mãe para o Tribunal de Contas da União, além de ter encaixado dois parentes no Tribunal de Contas Estadual, que fiscalizava suas próprias contas. A prefeitura do Recife hoje é ocupada por homem de confiança seu, sujeito desconhecido pré-eleições, mas alavancado por seu nome. Campos justificou a onipresença de seus familiares em todas as esferas do aparelho estatal como resultante dos “predicados” que todos eles possuem. Aparentemente é uma família prodigiosa.
Eduardo Campos foi descrito na imprensa estrangeira como candidato “amigável” ao mercado e sua morte empurrou para baixo as cotações da bolsa de valores de São Paulo. Não é para menos; placas de isenções tributárias e subsídios diretos figuram em virtualmente todas as fábricas que povoam a zona da mata pernambucana. A PM pernambucana, sob comando direto dele, agiu para proteger os interesses das empreiteiras do projeto Novo Recife — que consiste na privatização de terrenos extremamente bem localizados na capital pernambucana em benefício de construtoras — espancando manifestantes e, depois, pregando o diálogo. Marina Silva, vice em sua chapa, à época, hipocritamente afirmou ser contra a violência policial e que diversos participantes do movimento contra o Novo Recife faziam parte de seu partido.
Em outras ocasiões, Eduardo Campos não teve problemas em ceder terrenos para empreiteiras, como para a construção do Shopping Riomar, que levou à desapropriação e expulsão de diversos moradores de palafitas da região. Essas pessoas tiveram destinos parecidos com os das milhares que foram expropriadas e desalojadas para a construção da Arena Pernambuco para a Copa do Mundo. Não à toa, as empresas de construção civil, antes pouco empolgadas com o partido de Campos, fizeram, neste ano, gordas doações ao PSB. E não à toa as grandes indústrias, os grandes bancos e empresas do agronegócio lamentaram a perda de um homem tão confiável.
Seu discurso melífluo de favorecimento aos mais pobres escondia uma política de controle, supressão e infiltração dos movimentos sociais. As escolhas políticas de Eduardo Campos foram sempre escondidas pela conveniente narrativa de “eficiência” na gestão pública. Em entrevista recente, dizia que o aborto não deveria ser liberado, reiterava seu apoio ao combate às drogas, reciclava o batido discurso de estigmatização do crack e afirmava que traficantes devem ir para trás das grades (assim como “quem estrupa” [sic]).
As 100 mil pessoas que lamentavam nas ruas no último domingo lembraram apenas do seu lado mais cínico: o político “moderno”, que queria livrar o país do “clientelismo” e do “favorecimento”, alguém para “construir alianças”, promover o “desenvolvimento sustentável”, “pensar nos pobres” e fazer “uma política mais humana”.
Um indivíduo com esse perfil realmente teria muitas dificuldades dentro do sistema político. Eduardo Campos não teve tantas.
Ele morreu, mas seus ideais vivem. Infelizmente.