Um ensaio de abertura, deliberadamente provocador, será seguido por respostas de dentro e fora do C4SS. Contribuições e comentários dos leitores são muito bem vindos. A seguinte conversa começa com um artigo de Casey Given, “Qual o sentido de checar seus privilégios?“. Nathan Goodman, Kevin Carson, Casey Given e Cathy Reisenwitz prepararam uma série de artigos que desafiam, exploram e respondem aos temas apresentados no artigo original de Given. Ao longo da próxima semana, o C4SS publicará todas as suas respostas. A série final poderá ser acessada na categoria O sentido do privilégio.
Em resposta ao meu argumento de que a teoria do privilégio não fala sobre culpa ou culpabilidade, ele menciona que o que afirma é percepção comum entre aqueles que passaram por treinamentos de sensibilidade de que estes servem para “induzir culpa” e que a interpretação mais comum é que mesmo aqueles que não foram donos de escravos ou “agiram de forma racista” “ainda deveriam se envergonhar”. Se essa for, de fato, sua percepção, parece que alguém não está ensinando direito ou, por algum motivo, alguém não está aprendendo.
Resumidamente, é um fato óbvio que (entre outros fatores) o racismo e o patriarcado existem em nossa sociedade e que brancos e homens se beneficiam dessas estruturas enquanto grupos. Deve ser notório para qualquer pessoa de bom senso que aqueles que não são submetidos a formas de opressão sistemática em suas vidas cotidianas têm vantagens sobre aqueles que são, da mesma forma que alguém que não possua um peso de 25 kg amarrado a seus braços tem uma vantagem sobre aqueles que possuem. A palavra “privilégio” é excelente para descrever esse fenômeno.
A ideia de que a palavra “privilégio” carrega uma conotação normativa, de que qualquer pessoa que não seja diariamente perseguido tem algum tipo de culpa, é francamente ridícula. Qualquer pessoa que passa essa ideia adiante simplesmente está fazendo um péssimo trabalho ao ensinar a teoria do privilégio e aliena as próprias pessoas que precisam compreendê-la com a mente aberta.
A lição do exercício do marshmallow a que Casey se refere não é a de que todos que não têm marshmallows na boca devem tê-los “enfiados goela abaixo” ou que devam sentir culpa por não terem. É simplesmente que eles estão em melhor situação, por questões estruturais de injustiça e talvez sem qualquer interferëncia própria, do que aqueles que estão com a boca cheia de marshmallows.
Por outro lado, eu acredito que haja uma tentativa de estimular essa má compreensão sobre o conceito de privilégio pela direita cultural como forma de sabotar o ativismo pela justiça social. Algumas pessoas podem subjetivamente escutar uma explicação precisa sobre o privilégio como condenação de si mesmas por conta de ressentimentos contra o próprio ativismo social.
Algumas pessoas, assim, podem interpretar o treinamento de sensibilidade como uma exigência de que se sintam culpadas por serem brancas, homens, cis, etc. Eu sou um novato nessas questões — tenho aprendido sobre elas há mais ou menos dois anos —, mas nunca interpretei esses conceitos dessa forma. Eu interpreto ações como treinamentos de sensibilidade como uma conscientização das vantagens na interação com mulheres, negros, indivíduos LGBT, etc, como um grito por apoio e solidariedade, como um pedido pelo microfone para ampliar suas vozes e como um alerta para os movimentos sociais como os de que eu faço parte percebam as necessidades interseccionais de seus membros menos privilegiados.
Mas suponhamos que algumas pessoas de fato digam aquilo que Casey menciona. Mesmo assim, algumas pessoas também perguntam “Por que negros podem chamar uns aos outros de pretos?”, “E se fizessem feriados pelo orgulho branco?” ou “A escravidão já acabou há mais de 100 anos, para que ficar preso nesse assunto?”. São coisas que eu ouço o tempo inteiro de pessoas que “nunca tiveram escravos” e não acham que se comportam de maneira racista.
O próprio fato de que há pessoas que veem o racismo ou o sexismo como questões de intolerância individual — de que homens e mulheres, brancos e negros podem ser culpados igualmente e não como um fenômeno estrutural — reflete profunda ignorância sobre a realidade em que vivemos. Qualquer homem ou pessoa branca que nao consiga entender nossos benefícios enquanto brancos ou homens sobre aqueles que não são brancos ou homens é ignorante sobre algo que não deveria ser. Se as pessoas não conseguem aprender porque as ideias estão sendo ensinadas de maneira ruim, porque não querem entender ou porque alguem as estimula a entender de maneira errônea não muda o fato de que são coisas que precisam ser compreendidas.
Intencionais ou não, as crenças de que o privilégio fala sobre culpa e de que o racismo não é senão um problema individual já atrapalharam muito o ativismo social. Não apenas por atrapalharem a percepção das estruturais sociais que procuramos desmontar, mas também por fazer com que as pessoas rejeitem o conceito do privilégio baseadas numa ideia falsa do que ele significa, o que acaba obstruindo esforços na luta contra a opressão.
Casey, estranhamente, tenta colocar a interseccionalidade em oposição ao conceito de privilégio. Mas os dois são inseparáveis. O propósito da interseccionalidade é entender os privilégios diferentes dentro de um grupo. Tratar o reconhecimento de que as formas interseccionais de privilégio prejudicam aina mais as pessoas que formas individuais de privilégo como uma refutação do privilégio é, por falta de uma palavra melhor, estranho.
Ainda mais estranha é que ele menciona o argumento de Nathan contra o essencialismo como se confirmasse sua posição, como se fosse um remédio para o “coletivismo” da velha teoria da opressão:
“A essencialização de uma “experiência feminina” ou de uma “experiência negra” básica ignora as diferentes formas pelas quais a opressão é sentida entre os membros desses grupos. Esse essencialismo significa, com frequência, tomar a experiência de alguns membros privilegiados desses grupos como o padrão. Por exemplo, uma “experiência feminina” padrão pode descrever especificamente aquilo que é sentido por mulheres brancas heterossexuais e cisgênero, que passam por situações de misoginia mas não são vítimas da homofobia, transfobia e do racismo por que outras mulheres passam.”
O problema com o essencialismo, porém, é que ele não dá atenção suficiente ao privilégio. A “compreensão holística da experiëncia individual” a que Nathan se refere — a ideia de que uma “experiência feminina típica” possa excluir mulheres negras, trabalhadoras e trans — é mais orientada ao privilégio do que as identidades monolíticas de mulheres, negros e outras identidades, porque foi criada para evitar que profissionais brancos de classe média-alta — como TERF (Feministas Radicais Trans-Exclusionárias), SWERF (Feministas Radicais Excludentes de Trabalhadoras do Sexo) e CEOs ricas como Sheryl Sandberg e Marissa Mayer — se passem por porta-vozes das “mulheres típicas” e evitem posições similares à hegemonia por uma classe profissional de “lideranças negras” dentro do movimento pelos direitos civis.
Finalmente, Casey repete que “a análise dos privilégios é uma causa sem um apelo à ação”. É como dizer que o entendimento da hidráulica não constrói um sistema de irrigação. É verdade, mas qualquer tentativa de construir um sistema de irrigação ignorando os princípios da hidráulica ou em violação deles estará fadada ao fracasso. Eu não sei o que dizer além de repetir que qualquer ação que não se baseie em uma percepção precisa da realidade não pode ser muito efetiva. Como afirmei em minha resposta original, o sindicato dos parceiros agrícolas americanos se dividiu racialmente nos anos 1930 não porque os seus membros utilizaram a teoria do privilégio de raça, mas porque a ignoraram.
Assim, eu não conseguiria colocar a questão de forma melhor que Nathan: “Casey Given nos estimula a entrar em ação para desafiar as instituições e regras que possibilitam e exacerbam a opressão. Contudo, para que possamos agir dessa forma com sucesso, é importante fazer análises precisas sobre a opressão contra a qual pretendemos lutar.” Tanto a ação sem reflexão quanto a reflexão sem ação são inúteis.