Um ensaio de abertura, deliberadamente provocador, será seguido por respostas de dentro e fora do C4SS. Contribuições e comentários dos leitores são muito bem vindos. A seguinte conversa começa com um artigo de Casey Given, “Qual o sentido de checar seus privilégios?“. Nathan Goodman, Kevin Carson, Casey Given e Cathy Reisenwitz prepararam uma série de artigos que desafiam, exploram e respondem aos temas apresentados no artigo original de Given. Ao longo da próxima semana, o C4SS publicará todas as suas respostas. A série final poderá ser acessada na categoria O sentido do privilégio.
Em apenas algumas linhas, o calouro da Universidade de Princeton Tal Fortgang levou novamente o tópico dos privilégios às notícias nacionais. “Por trás de todo sucesso, grande ou pequeno, há uma história, que nem sempre é contada pelo sexo ou pela cor da pele”, afirmava Fortgang em um artigo para o jornal estudantil conservador Princeton Tory. “[Presumir] que é e que eu deva pedir desculpas por isso é um insulto”, escreveu. O artigo de Fortgang foi republicado pela revista Time e deu início a um fogo cruzado de aplausos e vaios de todos os lados do espectro político.
O que a mídia não percebe, contudo, é que esse circo não é nada novo. O conceito de privilégios ronda os círculos acadêmicos há mais de meio século, sobrevivendo apesar de seu esgotamento. Embora surtos de indignação conservadora como os de Fortgang surjam com alguma frequência, com a defesa de valores meritocráticos, as críticas mais interessantes vêm do meio intelectual preocupado com a justiça social, de onde surgiu a análise do privilégio. Alguns acadêmicos alinhados à esquerda condenam a estrutura de análise de privilégios por varrer a opressão para baixo do tapete, enfatizando a culpa branca em vez da ação política para acabar com a desigualdade sócio-econômica.
Embora a mídia não dê muita atenção para esse fato na cobertura da polêmica sobre o artigo de Fortgang, o conceito de privilégio tem suas raízes no ensaio de 1988 de Peggy McIntosh “White Privilege and Male Privilege: A Personal Account of Coming to See Correspondences through Work in Women’s Studies” (em português, “Privilégio branco e privilégio masculino: Um relato pessoal da percepção de suas correspondências através do trabalho nos estudos sobre a mulher”). Nele, McIntosh lista 46 “efeitos diários do privilégio branco”, desde os mais abstratos (por exemplo, “Me sentirei bem vinda e ‘normal’ nos locais mais comuns da vida pública, institucional e social”) aos mais concretos (por exemplo, “Eu posso ir fazer compras sozinha na maior parte do tempo com a certeza de que não serei seguida ou perseguida”). Embora a maioria das vantagens sociais enumeradas na lista de McIntosh sejam verdadeiras, o ensaio não dá ao leitor a certeza sobre o que fazer com seu novo conhecimento sobre as vantagens dentro da sociedade.
A própria McIntosh admite na conclusão de seu ensaio que a percepção dos próprios privilégios não é suficiente para combatê-los. “Me foi ensinado que o racismo poderia acabar se os brancos mudassem suas atitudes”, lembra ela. “Atos individuais podem amenizar, mas não podem acabar com esses problemas”. Como, então, a análise dos privilégios pode ajudar a acabar com a desigualdade estrutural? McIntosh parece apontar para alguns tipos de reformas governamentais, sem dar respostas definitivas. Na penúltima frase de seu ensaio, ela mesma pergunta: “O que faremos com esse conhecimento?”
Se a consciência dos próprios privilégios não é suficiente para acabar com a opressão, a própria estrutura analítica parece pouco mais que um exercício de alívio da culpa sentida pelos brancos. Qual seria seu benefício? A culpa branca não vai impedir que os policiais parem indivíduos negros. A culpa branca não vai ajudar uma família a escapar do ciclo de pobreza em que seus antepassados ficaram presos por séculos. Como explicou o Midwest Critical Whiteness Collective em um artigo no outono de 2013 para o Harvard Educational Review, “embora a leitura e o trabalho com o ensaio de McIntosh seja um exercício de conscientização para indivíduos brancos, seu texto não nos ajuda no entendimento e no desmonte da supremacia branca sistêmica”.
O conceito de privilégio não apenas ignora a ação, mas também ignora a opressão. McIntosh deixa claro que se tratam de conceitos separados na primeira frase, destacando a “frequência com que homens não estão dispostos a conceder que dispõem de mais privilégios, embora possam conceder que as mulheres estão em posição de desvantagem”. O privilégio, do ponto de vista de McIntosh, é mais que a ausência de opressão: são vantagens especiais concedidas pela sociedade a um grupo seleto de pessoas.
Ao observar sua lista, contudo, parece estranho dizer que se trata de “mais privilégio” não ser perseguido ao fazer compras em um supermercado. Afinal, todos deveriam se sentir seguros em um mundo ideal, correto? Não é o objetivo do ativismo antirracista ajudar as minorias a se sentirem bem vindas e “normais” em todas as facetas da vida pública, institucional e social? Nesse sentido, McIntosh parece confundir privilégios e direitos humanos, como explica o filósofo de estudos africanos Lewis Gordon em sua compilação sobre raça What White Looks Like:
Um privilégio é algo de que nem todos precisam, mas direitos são o oposto. Dada essa distinção, surge uma dimensão mais insidiosa do argumento do privilégio branco. Ele requer que condenemos os brancos por possuir, concretamente, as características da vida contemporânea que deveriam estar disponíveis para todos. Se isso estiver correto, como podemos esperar que os brancos abram mão delas?
A preocupação de McIntosh com a crítica dos privilégios de que todos deveriam desfrutar é priorizada em detrimento da luta contra a opressão que ninguém deveria sofrer. Não se engane, porém: há várias diferenças entre como as classes socioeconômicas lidam com a vida cotidiana. Contudo, a resposta a essas desigualdades não é oprimindo as pessoas que desfrutam de privilégios devidos, mas elevando aquelas que não os possuem através da ação política.