Muitos chavões da nossa cultura política escondem a natureza real do que acontece em casos como o de Baton Rouge e, anteriormente, em uma grande lista de acontecimentos que passa por Ferguson e pelo espancamento de Rodney King. O que esses chavões escondem é o caráter estrutural da brutalidade policial. Os dois mais importantes são os que tratam a má conduta policial como um desvio da normalidade e o tratamento do problema como o de “casos isolados”.
A “lei” não significa absolutamente nada. Veja o que ocorreu com Chris Le Day, o homem que gravou e distribuiu o vídeo do assassinato de Alton Sterling em Baton Rouge. Inicialmente, ele foi preso porque (supostamente) “se parecia com o suspeito” em um caso de agressão. Quando esse pretexto não funcionou, utilizaram algumas multas de trânsito pendentes como justificativa para mantê-lo sob custódia. Dá até para imaginar que a lei que ele violou não importava tanto e que o motivo real do que ocorreu foi se vingar de ele ter gravado um policial cometendo assassinato em vídeo, não é mesmo?
Os policiais torcem e retorcem a “lei” como for necessário para chegar aos resultados que desejam. Inventarão qualquer pretexto — faróis quebrados, multas pendentes, “tentativa de fuga” — para perseguir, prender ou executar extrajudicialmente qualquer pessoa de que não gostarem. Frequentemente, afirma-se que as prisões são escolas do crime. A cultura policial também é. A fabricação de “causas prováveis”, evidências forjadas, os mandados judiciais conseguidos através de perjúrio, as chantagens para conseguir testemunhos de presos: os policiais são gênios na hora de encontrar formas de driblar os direitos de devido processo e as restrições a seus poderes de busca e apreensão.
Se os abusos policiais fossem uma aberração que o sistema é capaz de consertar e retornar ao “normal”, por que não houve autocorreção nos dois anos desde Ferguson e desde o início do movimento Black Lives Matter? Ao contrário, o que vemos são novos assassinatos de pessoas negras desarmadas, seguidos de grandes protestos — que se transformam em conflitos com a polícia, quando esta decide usar gás lacrimongêneo e mangueiras de incêndio para dispersar as multidões. Incapaz de corrigir a si próprio, o sistema só consegue reforçar seus comportamentos existentes.
Se Ferguson e Baton Rouge fossem casos isolados, seria de se esperar que os policiais criminosos fossem punidos e removidos do sistema. Pelo contrário, o que vemos é que o sistema se fecha em sua defesa. Aqueles que se manifestam contra a brutalidade policial têm sido recebidos, em cidades onde ocorreram os abusos policiais, pela força repressiva do estado.
É possível que a maioria — ou pelo menos grande parte — sejam boas pessoas, no sentido de que têm escrúpulos morais e se recusam silenciosamente a se envolver em mais abusos do que suas posições exigem. Mas eles não sobreviveriam dentro do sistema a não ser que honrassem o código de honra da polícia e aprendessem a olhar para o outro lado quando os “casos isolados” agem de maneira abusiva. Os poucos policiais que dão testemunho contra a corrupção sofrem o mesmo destino que os outros delatores: são perseguidos pelos superiores até se demitirem, tendo suas carreiras e vidas arruinadas no processo.
O problema não é que o sistema deva retornar — “retornar”, haha! — a algum tipo de normalidade que se baseia no “estado de direito” ou que os “casos isolados” devam ser mais exemplarmente punidos. O problema é a natureza do sistema: o papel estrutural da polícia como componente do estado capitalista na proteção do sistema de domínio de classe e supremacia branca. Até que ataquemos as raízes desse sistema de poder, para usar uma metáfora empregada por Thoreau, arrancar os galhos não surtirá qualquer efeito.