Uma esquerda contra Dilma - Stefan Rotenberg

No dia 13/03, eu compareci aos protestos contra a Dilma no Rio de Janeiro — e não correu tudo bem. Eu e meus amigos fomos hostilizados por uma parte dos manifestantes e tivemos de ser escoltados pela PM para que não sofrêssemos maiores agressões. Esse aqui é o meu relato extremamente longo, acompanhado das minhas reflexões sobre tudo que ocorreu. Senta que lá vem textão.

Eu e mais cinco amigos organizamos na madrugada de ontem (sim) a nossa ida ao protesto hoje. Nós nos conhecemos por meio de um grupo de discussão sobre a esquerda libertária e nos identificamos, em diferentes graus, com pautas progressistas e libertárias. Considero o governo Dilma péssimo, tanto na sua administração econômica — em que prevalece um desenvolvimentismo vulgar extremamente irresponsável ecológica e economicamente — quanto nas questões propriamente sociais — em que não se avançou o suficiente em pautas importantes, como os direitos de minorias, e noutras até se retrocedeu, como é o caso da questão indígena e da reforma agrária. Sou, portanto, de esquerda, mas sou contra a Dilma.

Fizemos os cartazes antes de sair de casa, tudo em cima da hora mesmo. Eles diziam:
  • Esquerda contra Dilma
  • + Drogas – Dilma
  • Fora Dilma contra o genocídio indígena
  • Livre Mercado = Comunismo Pleno
  • Dilma <3 Geisel (esse nós quase não mostramos, porque fomos mordidos por uma má consciência terrível)
O cartaz relacionando livre mercado a comunismo pleno é uma referência ao texto de Kevin Carson, um anti-capitalista de livre mercado de esquerda. O artigo pode ser lido aqui. Os outros cartazes são mais ou menos auto-explicativos. Mas os cartazes não foram a nossa única forma de sinalização política. Decidimos, os homens, ir de saia, em diálogo com, e apoio a, outros protestos a favor da liberdade de vestir o que se quiser e contra o sexismo. Recusamos, intencionalmente, o verde-e-amarelo. Um de nós foi de branco; outra, de roxo; outra, de preto; e eu, de vermelho.
Eu não sou ingênuo quanto ao significado do vermelho. Sei que está associado ao socialismo e à esquerda, e foi por isso que escolhi ir assim. Acredito que a esquerda deveria criticar o governo Dilma e eu queria marcar a minha diferença em relação aos outros manifestantes e à esquerda tradicional (que via de regra é governista).

De fato, foi o cartaz da “Esquerda contra Dilma” que mais chamou a atenção das pessoas. Várias vezes nos pararam para tirar fotos, algumas pessoas conversavam, curiosas, outras ironizavam um pouco. Mas, durante quase toda a nossa caminhada, fomos muito bem recebidos e eu me senti muito bem. Meus amigos de esquerda haviam me alertado sobre os supostos perigos de ir à manifestação de vermelho, mas conforme eu via os sorrisos, e às vezes os elogios, das pessoas à minha volta fui me tranquilizando. Era, afinal, uma manifestação pacífica.

Andamos tranquilos por mais de uma hora quase toda a Av. Atlântica, muito felizes com os nossos cartazes e com o apoio e a curiosidade das pessoas. Sim, havia quem caminhasse com a camisa do Bolsonaro e num dos carros de som um adesivo pedia “Intervenção Constitucional Militar”, mas nós fomos para a rua exatamente porque não acreditamos que protestos devem ser homogêneos e monolíticos. Caminhávamos pela diferença, não pela identidade. Não gostamos, claro; vaiamos, elevamos mais alto os nossos cartazes, mas foi tudo bastante tranquilo. Parte do jogo.

Durante nossa caminhada, quem mais nos hostilizou foi uma transeunte de esquerda. Ela tampouco vestia verde-e-amarelo e carregava consigo uma daquelas câmeras boas. O cabelo tinha regiões raspadas e atrás da orelha notava-se um beque quase findo. Ela pediu para tirar fotos de nós e perguntou se aceitávamos conceder uma rápida entrevista. Aceitei. De cara ela me perguntou sobre o cartaz da Esquerda contra Dilma: como, afinal, eu poderia me considerar de esquerda, se estava caminhando junto a golpistas e apoiadores de Bolsonaros e Felicianos? Pegou-me de surpresa. Eu disse que eu sou de esquerda e considero o governo Dilma péssimo, e que por isso eu estava ali no protesto. Isso não precisava significar que eu sou igual a todos os outros no protesto. Eu disse que a um protesto escolhe-se ir com base numa idéia, não na identidade dos outros integrantes. Disse que eu queria desfazer essa idéia de que os protestos são homogêneos e que repudiava a leitura de que neles só havia “coxinhas” e reacionários. Tá, não sei se eu disse exatamente isso, mas eu disse algo nessa linha. Minhas amigas complementaram a minha fala com um repúdio enfático ao Bolsonaro e ao Feliciano. A mulher foi agressiva e confrontadora. Ficamos meio tristes de perceber que a pessoa mais hostil até aquele momento era de esquerda.

Paramos de caminhar mais ou menos na altura da Figueiredo Magalhães, primeiro para encontrar um amigo e depois para encontrar o meu pai. Nem dois minutos se passaram desde que eu desliguei a chamada, em que lhe avisava onde estávamos, e uma pequena confusão começou a se formar. Um dos vários carros de som tinha chegado até onde estávamos. Havia nele um grande cartaz dizendo “Fora comunistas” e mais alguma outra coisa que eu não lembro. Tinham visto nos nossos cartazes a menção às drogas e o homem que empunhava o microfone apontou para o nosso pequeno grupo: “Nós não fazemos apologia às drogas!”. Alguém puxou uma vaia. Nós levantamos nossos cartazes com mais energia. “Olha esse pessoal aqui, fazendo apologia às drogas, defendendo comunismo!”. “Aqui não!”. “É pra oprimir mesmo!”. “Vão embora da nossa manifestação, não queremos vocês aqui”. Essas palavras estão longe de ser exatas, eu realmente não lembro com clareza. Mas logo havia dezenas de pessoas nos vaiando, xingando, olhando feio. Uma mulher, que devia ter lá pelos seus 50 anos, arrancou o meu cartaz por trás — e eu me virei com raiva. “Que porra é essa?!”, eu acho que foi o que gritei. Como que se faz isso em uma manifestação? Roubando cartaz? Eu queria meu cartaz de volta. Enquanto eu tentei me aproximar da mulher com o meu cartaz, um velho me acertou um soco na cabeça, por trás. Não doeu nem nada, quase não se pode dizer que era um soco. Mas o gesto era esse. “Que porra é essa?!”, eu repeti, ainda mais indignado. Foi nessa hora que a foto do tweet do Estadão foi tirada.

A partir daí as coisas escalonaram muito rápido. Logo havia o que parecia ser uma multidão em volta de nós e as palavras eram cada vez mais violentas. Vagabundo, petralha, babaca, drogado, maconheiro, corrupto, safado, ladrão, vai pra cuba. Em segundos as pessoas se tornaram caricaturas de si mesmos, obedecendo à ordem que vinha do caminhão de som como a um general que ordena atacar. Logo havia policiais à minha volta, para me proteger. O homem no caminhão de som dizia: “Que ironia, vocês tendo que ser defendidos pela polícia, que vocês tanto criticam! Covardes!”. Minhas amigas se juntaram a mim do lado de dentro do cordão policial e alguns minutos devem ter se passado com muitos xingamentos, tentativas de empurrão, confusão mesmo, alguns microfones de repórteres tentavam captar a nossa voz, muitas câmeras, muitos olhares. Uma cena surreal mesmo, coisa de cinema.

Logo veio a ordem de que fôssemos escoltados. “Vamos levar vocês para a viatura, dêem os braços”. Deviam ser cerca de oito policiais nos escoltando até a viatura. Em algum momento eu lembro de um homem que ameaçou bater com uma vassoura, o que deixou um dos policiais visivelmente com raiva. Enquanto caminhávamos em direção à viatura, continuavam os xingamentos e a confusão. A maioria dos envolvidos sequer havia visto os nossos cartazes e certamente fomos considerados “defensores do PT” ou algo assim. Não importava: as pessoas queriam um alvo e o encontraram em nós. Ressalte-se que, em volta do cordão dos policiais, alguns manifestantes mais sensatos fizeram um segundo cordão de proteção, dando-se as mãos, tentando manter distantes os malucos ensandecidos. Agradeço muito.

Fomos tratados sempre com gentileza e profissionalismo pelos policiais, que deixaram claro o tempo todo para onde íamos e perguntavam se estávamos confortáveis. Em 2013, eu fui um de muitos atacados pela PM. Fique a lição de que nossas críticas às instituições não se confundam com nossas críticas aos indivíduos que delas fazem parte. Hoje a polícia me protegeu. E fez um trabalho muito bem feito. Eu me senti verdadeiramente seguro, e sou muito grato aos policiais que nos protegeram.

Na delegacia preenchemos apenas os nossos dados, não assinamos nenhum documento, nem prestamos queixa ou algo parecido. Apenas pequenas formalidades. Esperamos o meu pai, que mora bem perto, chegar e conversamos, agora em lugar seguro, sobre o que havia acontecido. Estávamos todos um pouco escandalizados, ainda com bastante adrenalina, e extremamente indignados e tristes. Nós encontramos exatamente a caricatura que a esquerda dizia que encontraríamos. Fomos removidos de um protesto cuja pauta apoiamos por causa das roupas que vestíamos e dos cartazes que empunhávamos. Meus amigos haviam me visto na TV e no G1, recebi várias ligações preocupadas. A essa hora eu já estava bem, mas o que aconteceu não é para ser comemorado.

O que ficou? Quem leu tudo percebeu as várias críticas que fiz, seja ao cara do caminhão de som, seja à turba violenta que se formou à nossa volta. Eu fiquei triste. Fiquei triste de ficar sem os meus cartazes, arrancados das nossas mãos (apenas o cartaz dos indígenas sobrou). Fiquei triste de ver impulsos anti-democráticos tão violentamente irracionais — e tão repentinos! Não se pode generalizar as ações dos que nos hostilizaram; eu sei, por experiência própria, que muitas pessoas boas, tranquilas e pacíficas foram aos protestos. Mas ficou forte pra mim a impressão de que aquele comportamento de manada, a forma e a rapidez como as pessoas mudaram de tom e avançaram pra cima de nós, aquilo não é comportamento exatamente de “indivíduos”. Aquilo foi um comportamento de grupo. Um grupo marcando suas fronteiras, definindo o que pertence e o que não pertence, quem é “nós” e quem é “eles”. Um grupo lutando, com garras e dentes, para fazer valer uma identidade — e para excluir a diferença. Eu já vi de perto esses comportamentos de massa na esquerda e foi triste vê-los também “no outro lado”. Não estou com medo. Estou decepcionado. Nós confirmamos a horrorosa tese de que esses protestos são identitários, não programáticos. Ou, pelo menos, que muitas pessoas — pessoas demais — pensam e agem de forma identitária, em vez de programática. Muito se tem a dizer contra as políticas de identidade (e a favor de uma política da diferença!), e eu vou continuar dizendo, como eu e outros amigos já viemos fazendo. Mais do que nunca, eu sinto que é preciso ajudar as pessoas a não ser dominadas por instintos gregários de obediência e amor ao poder. É preciso ajudar as pessoas a passar do estágio 3 para o 4 (para quem não puder ler, é um texto falando sobre “estágios” cognitivos que definem a nossa maneira de lidar com relações, sistemas éticos, etc. O “nível 3” é bem mais focado em relações pessoais, em personalismo, em necessidade de simetria, já o 4 é bem mais atento pra existência de sistemas abstratos, contratos, regras externas, etc.). É preciso lutar contra o fascismo que há em nós — na esquerda e na direita.

Eu vou continuar lutando por uma esquerda mais ampla e menos autoritária. Agradeço muito aos amigos que me protegeram, se preocuparam, fizeram memes e ajudaram. Também aos manifestantes que tentaram conter os malucos e, principalmente, aos policiais que nos protegeram. Foi um dia e tanto e eu espero que não se repita.