I. O dilema ético inexistente
A disputa entre a Grécia e a União Europeia é um daqueles eventos que mostra o agudo contraste entre os libertários cuja maior preocupação é com uma genuína liberdade econômica e aqueles para quem a prioridade são os interesses das grandes empresas e das classes proprietárias. Em um debate no Facebook com outro escritor do Centro por uma Sociedade Sem Estado, um objetivista de direita exemplificou esta última posição — denunciando o repúdio à dívida como “roubo”.
Há muito de errado com essa opinião. Em primeiro lugar, ela ignora que o credor assume um risco e que parte dos juros representam o preço do risco de moratória. Em um nível individual, a maior parte das falências pessoas ocorrem com aqueles que ficam desempregados inesperadamente, com pessoas que têm que arcar com custos médicos catastróficos ou com mulheres abandonadas pelos maridos e incapazes de se sustentar. As enormes taxas de juros que você paga sobre as dívidas não-seguradas de cartão de crédito são o preço pago para dar garantias ao credor em caso de não-pagamento. Se você pensa que não pagar uma dívida e declarar falência em situação de dificuldade econômica inesperada é equivalente a “roubo”, você provavelmente acharia que emancipar os escravos sem compensar os senhores também era “roubo”.
Quando o empréstimo é pego pelo estado, obrigando os pagadores de impostos a custeá-lo, a complicação se torna ainda maior. Aqui encontramos o princípio da dívida odiosa. Mesmo em governos nominalmente representativos — e nenhum estado em toda a história jamais representou a maioria produtora, sendo sempre protetor das minorias proprietárias — a dívida é frequentemente contraída para projetos de “desenvolvimento” que beneficiam o capital externo, de acordo com as decisões tomadas pelas burocracias com laços estreitos com o Banco Mundial e sem qualquer consideração aos interesses dos seus supostos representados. Por que diabos os assalariados deveriam pagar impostos, com o dinheiro que precisam para comida, casas e remédios, que serão usados para pagar dívidas para banqueiros ricos e rentistas que eles nunca autorizaram?
Nós também devemos considerar o papel a que a dívida serve no capitalismo tardio. Em décadas recentes, o endividamento dos consumidores tem sido uma das principais formas de equilibrar a perda de poder de compra causada pela estagnação dos salários reais. A estagnação dos salários reais é efeito direto da função real do governo: minar o poder de negociação dos trabalhadores junto aos empregadores, proteger seus monopólios e direitos de propriedade artificial a partir dos quais as classes proprietárias coletam rendas, subsidiar os cartéis que permitem que as corporações oligopolistas explorem os consumidores com preços administrados, taxar as pessoas comuns para socializar os custos operacionais das grandes empresas e transferir trilhões de dólares em renda das classes produtoras para a elite parasitária. A proliferação do endividamento dos consumidores tem sido um expediente utilizado pelos trabalhadores para sobreviver diante de tais políticas; os empregados basicamente pagam juros para as mesmas classes que, em aliança com o estado, os prejudicaram e reduziram suas rendas em primeiro lugar.
Os mesmos princípios valem com o endividamento estatal. A Grécia é um país relativamente pobre e uma das maiores fontes de seu empobrecimento é sua adesão, nas últimas décadas, às políticas neoliberais que beneficiam corporações transnacionais às custas das pessoas comuns. Assim, qualquer aumento dos gastos e das dívidas pelo estado grego para sustentar uma rede de segurança social, na verdade, são o mesmo que pedir empréstimos dos ricos para desfazer o caos causado pelo roubo estatal dos pobres em benefício dos ricos.
II. O repúdio da dívida é só o começo
Você não acha que a função principal do estado grego ao longo dos anos tem sido beneficiar os ricos às custas dos pobres? Então vamos dar uma olhada em todas as coisas que o estado grego tem feito ultimamente justamente com esse fim e cuja abolição juntamente com o fim da dívida grega devastaria os interesses do capital global.
Hesito em recomendar que a Grécia abandone o euro e corte seus laços com o Banco Central Europeu porque não vivo na Grécia e não sofrerei as consequências dessas ações. Por isso, qualquer recomendação de minha parte nesse sentido seria pouco mais que um estímulo para que outras pessoas lutem em meu lugar.
Mas se a Grécia de fato decidir repudiar sua dívida e deixar a União Europeia, aqui estão algumas medidas que não apenas reduziriam o nível geral de intervenção estatal na economia ou substituiriam as funções corporativas-estatais com contrainstituições populares auto-organizadas, mas também elevariam o padrão de vida ao impedir enormes transferências de riqueza das pessoas comuns para financistas e corporações transnacionais.
1. A Grécia deve abandonar todos os acordos de “propriedade intelectual” e repudiar as provisões de PI de todos os chamados “acordos de livre comércio”. A partir de então, deverá ser permitido reproduzir qualquer software, peça de literatura, música, filme, medicamentos e bens manufaturados como tênis Nike e eletrônicos de consumo que estão sob copyright, patente ou trademark, tanto para consumo próprio quanto para venda sem os preços absurdos garantidos pelos monopólios.
2. O país deve deixar de proteger todos os títulos a terras vagas e não-trabalhadas que foram apropriadas pela elite com a ajuda do estado, além de recursos naturais e todas as terras cultivadas roubadas de camponeses em violação de seus direitos tradicionais, convertidos em monoculturas sob controle dos interesses do agronegócio global.
3. Um dos efeitos mais severos de curto prazo da retirada do euro, para o povo grego, seria o colapso da liquidez e o congelamento das contas bancárias, além da escassez de capital de investimento. Portanto…
3a. Embora, enquanto anarquista, eu não defenda qualquer tipo de moeda monopolista estatal, eu diria que há formas pelas quais o governo grego pode manter um sistema monetário e regular a oferta de moeda que não seriam apenas menos exploratórias para os trabalhadores, mas também menos estatistas em seus efeitos econômicos do que sob o regime atual do Banco Central Europeu. Gastos diretos de nova moeda nas quantidades necessárias para manter o poder de compra ou depósitos nas contas a juro zero como renda mínima ou crédito social não são concebivelmente mais arbitrários ou estatistas que a delegação a um cartel bancário o direito de criar dinheiro e emprestá-lo cobrando juros. Seria um sistema menos estatista porque eliminaria o pagamento de juros aos parasitas afiliados ao estado, que — muito longe de se absterem do consumo ou de emprestar suas “poupanças”, como afirma o mito dos libertários de direita — criam moeda do nada, sem custos, em benefício próprio.
3b. O que é mais importante é que o povo da Grécia tenha a capacidade de criar novos sistemas independentes de moeda que operem com base na abundância em vez da escassez. Convido-os para ler sobre um desses sistemas, as redes de crédito mútuo defendidas por E.C. Riegel e Thomas Greco.
3c. Os desenvolvimentos tecnológicos já eliminaram boa parte da importância do capital de investimento como gargalo. Máquinas de controle numérico portáteis já são capazes de produzir os bens que antes requeriam fábricas de milhões de dólares, com uma redução de duas ordens de magnitude nos custos. Essa revolução da micromanufatura é um retorno — em um nível tecnológico muito mais sofisticado — ao estado de coisas de quando a maioria da produção era feita com ferramentas artesanais que podiam ser adquiridas pelos trabalhadores médios. Oficinas comunitárias, comunidades de criadores e fábricas de garagem podem gradualmente se expandir e substituir a importação de bens manufaturados, começando com a produção de peças customizadas para manutenção de eletrodomésticos (ignorando suas patentes), para manter as vidas particulares das pessoas em andamento normal. Mecânicos de carros independentes podem utilizar versões piratas dos softwares de diagnóstico das grandes montadores em versões open-source das máquinas patenteadas de diagnóstico, consertando os carros com peças pirateadas pelas manufaturas locais.
4. Como no caso da moeda, por princípio eu não apoio qualquer tipo de cobrança de imposto. Porém, enquanto os impostos existem, algumas formas são menos estatistas e onerosas que outras. Um deslocamento dos impostos da renda do trabalho para terrenos não-modificados ou a imposição de taxas sobre externalidades negativas como a poluição e emissões de CO² seria um passo gigante na direção certa. Claro, eliminar os títulos ilegítimos às terras, como mencionado no ponto 2, reduziria em muito os rendimentos passíveis de taxação.