De acordo com sua versão mais conhecida, o “pluralismo de grupos de interesse” mencionado no livro Capitalismo americano de John Kenneth Galbraith, existe, em tese, um sistema de pesos e contrapesos (Galbraith os chamava de “pesos compensatórios”) entre as grandes empresas, as agências regulatórias do governo e os trabalhadores organizados. Porém, o que acontece no mundo real normalmente, quando há tão poucos centros de poder “opostos”, é que eles se unem em vez de limitar os poderes uns dos outros. Os grandes sindicatos que conhecemos (as uniões sob tutela estatal) são principalmente aliados das classes gerenciais cujo papel é forçar os trabalhadores subordinados a aceitarem seus contratos e evitar greves espontâneas e outras formas de ação direta. O relacionamento entre o governo e as empresas é notoriamente cooperativo, em que os dois formam “complexos” como o militar-industrial ou se unem em capturas regulatórias (o que ocorre, por exemplo, no caso do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, que emprega normalmente ex-executivos de grandes corporações do agronegócio). Contudo, como uma notícia da NBC mostra (Javier E. David, “Cyberbullying’s Got a New Target: Big Business“, NBCNews, 28 de março), há uma agência regulatória que os grandes negócios não podem capturar: nós!
Dado que o sistema econômico e político esteja organizado em torno de alguns poucos centros de poder concentrados, não é possível evitar essa tendência de formação de alianças. Mas há uma maneira de fazer com que o “estado regulatório” não seja capturável: tornando-o coextensivo às nossas ações, sem lideranças ou gerentes que afirmem agir em nosso nome. É exatamente isso que formas de organização horizontais em rede, possibilitadas pela internet, têm feito.
Anos atrás, Tom Coates observou que a combinação de comunicação em rede e plataformas caseiras livres e abertas permitiam que as pessoas executassem trabalhos informacionais (programação, publicação, gravação de vídeos e áudio, etc.) de qualidade superior ao que faziam em escritórios, com todas as suas reuniões, interrupções e programas proprietários que eram forçados a utilizar. John Robb criou a expressão “indivíduo superempoderado” para descrever a maneira pela qual essa comunicação e essas plataformas amplamente disponíveis agiam como multiplicadores de força e permitiam que indivíduos e pequenas células desafiassem instituições enormes e burocráticas (por exemplo, a al-Qaeda contra os Estados Unidos) em guerras assimétricas. O mesmo fenômeno é ilustrado pelo que os “piratas” que compartilham arquivos fizeram com as indústrias do cinema e da música, pelo que Chelsea Manning e Edward Snowden fizeram com o estado de segurança americano, e pela forma como a Primavera Árabe e o Syntagma derrubaram governos inteiros.
No caso da limitação dos poderes corporativos, os princípios básicos já existem há muito tempo. Os wobblies, trabalhadores associados ao sindicato radical Industrial Workers of the World, criaram a expressão “sabotar abrindo a boca” para quando empregados insatisfeitos vazam documentos e informam o público sobre todas as falcatruas de dentro das companhias que os empregadores prefeririam manter em segredo.
Com a ascensão da internet, das mídias sociais e de veículos de apoio como o Wikileaks e outros sites de vazamento de informações, o potencial para esse tipo de sabotagem cresceu em várias ordens de magnitude. Vimos os primeiros esboços dessa nova abordagem no julgamento de McLibel e nas campanhas de “culture jamming” (de subversão das mensagens corporativas) de Frank Kernaghan contra as más condições de trabalho em fábricas nos anos 1990. Ao mesmo tempo, as táticas tradicionais do trabalho de campanhas comunitárias e corporativas em conjunção com boicotes e decisões dissidentes de acionistas ganharam muito em poder — como evidenciado por campanhas como a da Coalizão dos Trabalhadores de Immolakee de informação e boicote a várias cadeias de fast food. Quando todas essas facetas do ativismo em rede se unem contra uma corporação gigante, é como um cardume de piranhas que engole um tiranossauro.
Neste último surto de atenção midiática ao fenômeno, Javier David examina as experiências infelizes em relações públicas das corporações neste admirável mundo novo de ativismo social de mídia e os péssimos acontecimentos de quando campanhas felizes e sorridentes encontram pessoas no Twitter e no Facebook que não vão cooperar com elas. Seus exemplos são duas campanhas recentes de relações públicas — a hashtag do Starbucks #RaceTogether (que pretendia fazer com que os trabalhadores e consumidores “conversassem” a respeito de questões raciais) e uma capa sexista da revista em quadrinhos Batgirl — que se tornaram desastres humilhantes nas mídias sociais. Em ambos os casos, as campanhas foram suspensas após uma violenta reação.
David também menciona uma campanha de 2013 no Twitter contra a empresa Sallie Mae por perseguir os pais de um estudante morto para que pagassem seu empréstimo estudantil, o que fez com que a empresa tivesse que se recolher com o rabo entre as pernas por conta do ultraje público.
Embora David não mencione, a nova arquitetura democrática da mídia também se faz sentir na política internacional. Se os levantes do EZLN em Chiapas ou o uso de esquadrões mercenários na Nigéria tivesse ocorrido antes dos anos 1990, as notícias nunca teriam passado da página 7 do New York Times. No entanto, graças a ativistas do mundo todo presentes na internet, a Shell teve que responder à repercussão pública e os zapatistas, que uma década antes teriam sido suprimidos permanentemente em poucos dias, têm mantido o autogoverno em Chiapas há vinte anos.
Todos concordam que a causa dessas mudanças na estrutura comunicativa é a mudança da estrutura anterior, que era baseada num canal unidirecional em que alguns poucos gatekeepers controlam o que vemos, para uma arquitetura “de muitos para muitos” em que todos podem falar uns com os outros — e responder — livremente. Se isso é bom, os opinadores oficiais ainda estão divididos.
O próprio David envolve a questão no esquema “por um lado, mas por outro” de forma estranha. A internet é “vista por muitos como uma forma de limitar o poder das empresas e dar aos consumidores alguma alavancagem”. Aparentemente, esse é o lado Dr. Jekyll da equação. “Contudo, ela também [ênfase minha] significa que as empresas não mais controlam suas próprias narrativas e podem rapidamente se tornar incapazes de interferir em suas histórias”. Veja bem, essas duas afirmações parecem ser apenas formas diferentes de dizer a mesma coisa. Os consumidores são capazes de limitar o poder das corporações porque estas não mais controlam a mensagem. Ninguém além das corporações deve ter qualquer problema com isso e é seguro dizer que qualquer coisa que deixe os gerentes corporativos insatisfeitos é um bom motivo para as outras pessoas comemorarem. Então, o uso do “contudo” no texto de David parece ser o mesmo que escrever um texto sobre antibióticos que dá igual espaço à opinião das bactérias pneumococos.
David cita a professora do MIT Renée Richardson Gosline: “Antigamente, na época dos ‘Mad Men’, as empresas tinham completo controle sobre as mensagens e sobre aquilo que os consumidores podiam ver”. Agora, por outro lado, “o consumidor também tem uma voz”.
Jules Polonetsky do Future of Privacy Forum vê esse fenômeno por uma perspectiva mais negativa. “As visões de um certo nicho estão sendo extrapoladas (…) e moldam o que parece ser a opinião pública. As mídias sociais estão começando a ditar a primeira camada da opinião pública. Elas podem provocar reações mais extremas do que aquilo que de fato representa o público.”
Vamos rebobinar rapidamente e colocar a reclamação de Polonetsky em perspectiva. Desde a ascensão do nexo corporativo-estatal americano no final do século 19 até, talvez, 20 anos atrás, nós vivíamos mergulhados em uma “opinião pública mainstream” criada quase inteiramente pelas elites gerenciais-centristas das grandes empresas, agências regulatórias, grandes universidades, grandes fundações sem fins lucrativos e dos veículos de mídia corporativos. Não apenas a estrutura do estado corporativo foi erguida por esses interesses institucionais interconectados, sem levar em conta as opiniões reais do público, mas essas oligarquias burocráticas levaram o país a uma guerra atrás da outra sob falsos pretextos como se fossem fatos consumados. Em todas as instâncias, o sistema dependia de um canal unidirecional de informações para “fabricar o consentimento” (nas palavras de Edward Bernays, que ajudou Woodrow Wilson a legitimar a entrada dos Estados Unidos na Primeira guerra Mundial e que acabou mais tarde por criar toda a indústria de relações públicas). E, em todas as instâncias, uma vez que a única ideia de “opinião pública” que o público possuía era o produto final excretado pelo braço midiático dessas elites corporativas-estatais, a “opinião pública” sempre foi moldada pelo establishment como algumas poucas alternativas que modificassem muito pouco a estrutura do sistema e que fossem executadas por aqueles que já detinham o poder. Qualquer alternativa política fora desse espectro centrista que alterasse fundamentalmente a estrutura do sistema a ponto de reduzir seriamente o poder das elites corporativas-estatais era descartada como “extremista” e fora do “consenso mainstream” da opinião pública. E o público não tinha qualquer forma de conhecer essas alternativas, porque, além de discutir com seus círculos de amigos imediatos, não havia qualquer maneira de saber qual era a “opinião pública”, que, para todos os efeitos, era aquilo que o sistema centralizado de informações dizia ser.
Não há qualquer preocupação por parte de Polonetsky de que o velho e fabricado “consenso centrista”, montado para legitimar o domínio contínuo pelas elites corporativas-estatais, possa ter representado algo menos autêntico que a “opinião pública”. Porém, agora que um século e meio de fabricação de “opinião pública” — que é impossível saber se de fato refletia a opinião pública — chega ao fim e nós de fato podemos conversar uns com os outros sem o intermédio das grandes redes de TV e da Associated Press, ele está repentinamente preocupado que os extremistas estejam criando uma impressão errônea do que caracteriza a opinião pública.
Não. Durante toda a história humana, a chamada “opinião pública” foi moldada por “extremistas” — a elite de gerentes da opinião que C. Wright Mills chamava de “crackpot realists” (“realistas excêntricos”) e que irônicos comentaristas de mídia chamam de “pessoas sérias”. Todas as sociedades ao longo da história, desde a ascensão dos primeiros estados e dos primeiros sistemas de exploração de classe, possuíam um aparato de reprodução cultural cujo objetivo era garantir que cada geração estivesse inserida numa visão de mundo que enxergasse o sistema de poder sob o qual viviam como natural e inevitável, o único modo viável de se fazer as coisas, e que qualquer alternativa que envolvesse perdas significativas de poder pelas elites só poderia ser “extremista”.
Por muito tempo vivemos sob um sistema de informações desenhado para evitar a comunicação horizontal entre as pessoas, para que nossas comunicações pudessem apenas ser mediadas pelas elites de gatekeepers que cuidassem das arquiteturas de informação. Nossa única impressão do que caracteriza a opinião pública é agregada por essas estruturas. Agora, porém, como afirmou James Scott em A dominação e a arte da resistência, as pessoas comuns são capazes de se comunicar diretamente umas com as outras e reconhecer que suas reivindicações, seus sonhos e suas angústias são compartilhadas por outros subordinados com os quais não estão em contato direto.
Pela primeira vez, podemos driblar o consenso fabricado, conversar uns com os outros e reagir àqueles que controlam o sistema. Quando conversamos uns com os outros, dizemos — e fazemos — coisas que eles não aprovam. Onde quer que vão, o que quer que façam, nós os vigiaremos e agiremos.
Repetindo algo que eu já disse várias vezes, o século 20 foi a era das organizações gigantes. No final do 21, não faltará enterrar nenhuma delas.