A recente trajetória de eventos que levou à morte dos oficiais da polícia de Nova York Wenjian Liu e Rafael Ramos e a reação nacional da classe policial deixaram mais claro que nunca como a polícia se sente em relação ao público que supostamente serve e protege: têm muito medo. Por mais de vinte anos, o combate às drogas e a militarização policial estimularam uma tendência crescente da polícia urbana a enxergar as populações policiadas como áreas inimigas ocupadas. No livro de Radley Balko Rise of the Warrior Cop (“A ascensão do policial guerreiro”, em tradução livre para o português), eles admitem parar e sair de suas viaturas aleatoriamente em bairros não-brancos somente para mostrar força e lembrar aos residentes intimidados quem é que manda. E graças à proliferação de esquadrões da SWAT (estabelecidos originalmente somente para situações raras, como a libertação de reféns) mesmo em cidades pequenas e ao enorme fluxo de equipamentos militares a forças policiais de locais como Ferguson, essa atitude hostil e amedrontada em relação à população local chegou aos subúrbios americanos.
Enquanto isso, a cultura interna da polícia vem assumindo os mesmos tons paranoicos que fizeram com que o tenente Callen e seus homens massacrassem a população de Mỹ Lai. Desde os anos 1980, os policiais descrevem seus trabalhos com a mesma retórica militarista da Guerra do Vietnã. Mas essas autopercepções estão totalmente divorciadas da realidade. Os soldados no Vietnã de fato estavam sujeitos a um grande risco de morte. No caso dos policiais, porém, suas mortes em serviço caem ano após ano há décadas. O trabalho policial é o décimo mais perigoso (os dois mais perigosos são a exploração madeireira e a pesca); a coleta de lixo é mais perigosa que ser um policial.
Essa autoimagem conflituosa é norma na polícia há mais de vinte anos. Mais recentemente, a polícia se ressente cada vez mais do fato de que as filmagens de suas ações e as críticas que recebem (como após a perseguição dos acampamentos do movimento Occupy) impedem que eles exerçam sua autoridade como antes. Porém, a cultura policial entrou em estado de pânico em resposta aos protestos contra a morte de Michael Brown, em Ferguson, e às campanhas nacionais #WeCantBreathe e #BlackLivesMatter após os vereditos que inocentaram os policiais responsáveis pelas mortes de Brown e Eric Garner.
Em fóruns policiais, os oficiais se sentem livres para admitir como eles de fato nos enxergam: um bando de ingratos chorões, mimados demais para perceber que quem veste o uniforme azul os protege do caos. Virtualmente todas as pessoas não-brancas mortas por um policial são tratadas por adjetivos como “criminosos” ou “bandidos”. Os apologistas da polícia trabalham rapidamente para encontrar sujeira que caia no colo das vítimas. Eles retratam as vítimas com os termos mais bestiais, estereotipados e ameaçadores dos homens negros (têm fixação pela altura do garoto de 12 anos Tamir Rice, morto em novembro, e descrevem Michael Brown como um jogador de futebol fisicamente enorme que grunhia como um animal).
Poul Anderson escreveu certa vez que o governo é a única instituição que tem o direito de matar uma pessoa por desobedecê-lo. Isso fica claro no caso da polícia. Um porta-voz da polícia disse abertamente que, se você não deseja ser morto, obedeça às ordens da polícia sem questionar (como se isso fosse garantia suficiente, considerando que pessoas que em convulsão ou coma diabético já foram mortas por “resistirem à prisão”). Entre a população, a frase “Não resista! Não resista!” virou piada, mas mesmo a polícia acha graça do fato de que eles podem matar sem repercussões (por exemplo, as camisetas “We Show Up Early to Beat the Crowds“, vendidas pelo sindicato policial de Denver).
Para a polícia, qualquer crítica, mesmo a sugestão de que a polícia às vezes possa agir com força excessiva ou de acordo com o perfil racial de alguém é vista como uma ameaça existencial. Os mesmos fóruns mencionados acima estavam cheios de reclamações de que os protestos contra os vereditos dos casos Brown e Garner estavam “abrindo a temporada de caça” aos policiais. O sindicato dos policiais de Nova York avisou ao prefeito Bill de Blasio, depois de ele advertir seu filho mestiço a ser especialmente cuidadoso perto de policiais, que ele não seria bem-vindo a funerais de oficiais.
A paranoia policial chegou ao ponto de ebulição com os protestos após a morte de Michael Brown e os vereditos; a morte de Liu e Ramos fez com que ela se tornasse explosiva. Emails internos do Departamento de Polícia de Nova York acusaram De Blasio de ter “sangue em suas mãos” por suas observações e afirmava que os manifestantes eram cúmplices. Policiais em todos os Estados Unidos ecoam esses sentimentos.
Ou seja, os policiais culpam a todos pela hostilidade que levou às mortes de Liu e Ramos, exceto a si mesmos. Os policiais são profissionais no jogo do vitimismo.
O Departamento de Polícia de Nova York se considera agora em estado de guerra. Os policiais fazem patrulha apenas em pares, entregando mandados e convocações somente quando absolutamente necessário para fazer uma prisão. Depois de décadas afirmando quão inconcebivelmente perigoso seu trabalho é, a polícia novaiorquina responde a duas mortes em serviços em uma tropa de milhares — as primeiras mortes em três anos — como se fosse Pearl Harbor. Isso diz muito sobre quão privilegiados e abusivos os policiais são.
Nós podemos presumir com segurança que, se os policiais de Nova York minimizarem suas interações com a população ao mínimo necessário, os crimes perpetrados pelo público e pelos policiais só diminuirão. Talvez eles possam entrar em greve também — outro fenômeno historicamente associado a quedas drásticas no índice de criminalidade. É um jeito bom de tirar criminosos das ruas.