Um dos maiores desafios à desestatização completa da provisão do direito, com livre concorrência entre agências provedoras de serviços de segurança e arbitragem, é a possibilidade de conluio entre essas entidades contra seus clientes.
A observação econômica é a de que os consumidores perderão algum dinheiro enquanto, temporariamente, o conluio entre empresas no mercado de bens e serviços estiver em vigor, tendo em vista a relação quantidade x preço que estas ofertarão sob o cartel. Isso talvez não seja tão grave, uma vez que, no livre mercado, tais acordos seriam instáveis. Além disso, as empresas não têm poder sobre os direitos das partes, que continuariam os mesmos, alterando-se apenas os preços e quantidades ofertados ao consumidor.
No caso de agências não-estatais de provisão do direito, a situação muda de figura. O conluio entre as agências que possibilitam a definição dos direitos de cada um poderia levar à alteração na própria estrutura de direitos dos seus clientes, com efeitos muito mais permanentes, mesmo após a dissolução do cartel. Manipular o sistema jurídico pode levar a sérios prejuízos contra as vítimas específicas.
Uma solução defendida por alguns é a de que deveria existir um estado constitucional para realizar supervisão antitruste dessas agências. É a conclusão de Robin Hanson (que defende a privatização completa da provisão do direito) e de Gillian K. Hadfield (que defende a privatização apenas do direito comercial).
Apesar de esses autores não detalharem como essa supervisão antitruste seria realizada, parece-me que, para além da convencional proibição das práticas anticompetitivas e a nulidade (ou mesmo proibição) dos contratos de cartelização, deveria haver um mandato constitucional especificando os limites do que as agências podem oferecer (por exemplo, a inadmissibilidade de detenções provisórias sem procedimento específico) e proibindo arranjos secretos que possam conduzir à alteração lesiva da estrutura de direitos dos clientes. Assim, restrições constitucionais salvaguardariam os direitos das pessoas contra manipulações das agências em conluio.
Essa seria a conclusão minarquista. Mas e sob o anarquismo? Como o anarquismo de mercado superaria essa barreira?
Primeiro, precisamos entender o que é uma restrição constitucional. Sob as democracias constitucionais, essas normas servem ao propósito de vedar que os atos emanados do legislativo, do judiciário e do próprio executivo venham a ter determinados conteúdos ou realizados sem cumprimento de certos procedimentos. Por exemplo, no Brasil, uma lei que estabeleça a pena de morte é inconstitucional e, portanto, inválida perante a constituição. Logo, restrições constitucionais estabelecem aquilo que não será aceito como regra mesmo que venha a ser aprovado pelas instâncias que têm competência para decidir as regras.
O que seria análogo às constituições políticas em termos de direito privado? Os estatutos de associações. Assim como as constituições criam a ordem jurídica do estado, os estatutos de associações criam as associações respectivas. Assim como as constituições estabelecem restrições sobre as instâncias decisórias do estado, estatutos de associação fazem o mesmo em relação às diretorias e assembleias da associação. No caso específico dos condomínios no Brasil, a lei estabelece que os condôminos devem elaborar a convenção de condomínio (que seria seu estatuto) e aprovar um regimento interno do edifício ou do conjunto de edifícios.
O anarquismo de mercado permite organizações como estas. Embora o modelo mais conhecido de policentrismo legal seja o de Murray Rothbard e de David Friedman, onde a opção pelas agências de provisão do direito é realizada diretamente pelos indivíduos, o modelo de Michael Huemer em The Problem of Political Authority: An Examination of the Right to Coerce and the Duty to Obey (em português, “O problema da autoridade política: Um exame do direito de coação e do dever de obedecer”) visualiza a predominância da aquisição coletiva dos serviços de provisão do direito por meio de associações de moradores ou de condomínios. Essas associações contratariam agências de segurança e poderiam estipular um código legal que os árbitros aplicariam nas transações realizadas sob sua jurisdição.
Esse modelo de compra coletiva por meio de associações de moradores ou de condomínio abre espaço para a estipulação, na convenção ou no estatuto de cada associação, de regras que especifiquem as regras mínimas que a associação seguirá quando contratar serviços de segurança ou arbitragem. Ou seja, especificando que a associação não contratará agências que não sigam determinados limites (por exemplo, a já citada inadmissibilidade de detenções provisórias sem determinado procedimento específico) e que estejam autorizadas a fazer arranjos secretos com outras agências ou empresas.
Essa dinâmica é tanto mais interessante porque induz as agências a preverem em seus estatutos regras que especifiquem limites e proíbam arranjos secretos. Portanto, a tendência é que a constitucionalização explícita das associações influencie a constitucionalização das próprias agências a serem contratadas.
Veja que a segurança jurídica é maior ao ser realizada a contratação da agência por meio de uma associação de moradores ou de condomínio: a pessoa poderá invocar a nulidade de uma decisão arbitral ou de um procedimento adotado pela agência caso o ato esteja em desacordo com o estatuto ou convenção da associação, uma vez que cláusulas contratuais entre associação e agência que firam as cláusulas do estatuto ou convenção seriam inválidas, “inconstitucionais”.
Obviamente, as associações de moradores ou de condomínios não teriam o papel de supervisionar a competitividade geral do sistema, mas, por intermédio das restrições que cada uma estabelece em sua própria interação, contribuiriam para que os abusos dos conluios pelas agências fossem evitados e vigiados, de baixo para cima ao invés de cima para baixo.
Portanto, ordem anárquica de mercado não levaria a um mundo sem constituições, mas a um mundo de grande diversidade constitucional local, com a vantagem de que o “ambiente de escolha constitucional”, na terminologia usada por Patri Friedman, seria competitivo, descentralizado e aberto à entrada e à criação de novas entidades, onde a escolha individual pela associação é a garantia da liberdade individual e a contratação coletiva da(s) agência(s) por meio da associação é a garantia de maior segurança nas transações no mercado de provisão do direito.