Em sua visita ao Brasil, perguntaram ao neurocientista Carl Hart o que ele pensava sobre o termo “Cracolândia”. Hart respondeu: “Com esse nome, nós mostramos para a sociedade como vilanizar certos grupos de pessoas”. É verdade. Ao falarmos da “Cracolândia”, divorciamos a questão de nossa realidade. A Cracolândia passa a ser um mundo separado em que vigoram regras diferentes da nossa vida ordinária.
A característica distintiva do local passa a ser o fato de ser frequentado por usuários de crack. E o perfil dos usuários de crack já é amplamente conhecido: gente pobre, negra e favelada. Mas a narrativa criada pelo rótulo “Cracolândia” não é o de que são pessoas em necessidade, de que são indivíduos inseridos em um sistema com incentivos perversos, de que são peões no meio da troca de tiros entre a PM e o tráfico; a narrativa diz apenas que são “crackudos” que precisam ser eliminados.
O nome “Cracolândia” também exclui do imaginário coletivo o fato de que, como Hart menciona, as pessoas que frequentam esses locais são, essencialmente, comuns. São frequentemente dependentes de drogas (por isso dignas de compaixão e não de desprezo), mas suas ações, aspirações e relações são essencialmente comuns, desviando muito pouco do normal.
A política pode ser descrita por diversos ângulos, mas me parece ser útil pensar nela como um embate de discursos. E discursos não são apenas formalidades propagandísticas de um determinado modo de pensar. Não são a maneira como um pensamento se arranja no meu texto para atingir o seu entendimento. Discursos, como afirma Michel Foucault, são organizações do conhecimento institucionalizado; ou seja, o discurso necessariamente está relacionado a padrões historicamente estabelecidos de pensar o mundo.
Ao falarmos da Cracolândia, recortamos um aspecto da realidade e elegemos o discurso oposto. Nós reproduzimos e estigmatizamos as pessoas que fazem parte, por um motivo ou por outro, desses espaços. Paramos de lidar com indivíduos e passamos a pensar apenas nos termos de poder, nos termos do governo sobre “o que fazer” com as pessoas que estão na Cracolândia, como se houvesse algo particularmente diferente entre as pessoas que estão lá e os miseráveis de outros locais. Ou, como afirma Hart, como se o crack fosse de alguma forma diferente da cocaína, e não simplesmente a mesma droga com o estigma da pobreza.
A Cracolândia, enfim, é só o resultado natural de um combate às drogas cujo discurso pretende rotular todos os usuários de drogas como “drogados” ou “viciados” e justificar sua marginalização. Quando a sociedade nota que sua tentativa de marginalizar pessoas de fato cria bolsões de pessoas marginalizadas, as pessoas levantam a mãos para o céu e se perguntam “o que ocorreu de errado?”, como se o resultado não fosse previsível.
O discurso sobre o crack, como um todo, é desenhado para criar a casta de indesejáveis e de indivíduos fora da discussão racional política. Ou seja, é um discurso para racionalizar a força.
Nesta semana, ganhou força entre grupos liberais e libertários do Brasil o nome do candidato Paulo Batista à Assembleia Legislativa do estado de São Paulo. Propagandeado como alternativa liberal à assembleia estadual, salta aos olhos uma das propostas de Batista que trata do “combate ao crack”. Para ele, o governo deve adotar uma política de “tolerância zero” em relação a traficantes e consumidores do crack.
Muitos liberais e libertários defendem o candidato afirmando que, afora esse pequeno desvio dos princípios libertários, trata-se de uma ótima opção em nosso cenário político.
É uma pena que posições políticas não sejam todas de igual peso e defender a violência extrema, o encarceramento de certas pessoas e a higienização de locais específicos da cidade seja uma ideia absolutamente desprezível, não importa se você defende a redução dos impostos para materiais de construção.
Paulo Batista e os libertários que fazem pouco caso de sua posição sobre o crack pensam estar sendo oposição efetiva e sem utopias no contexto político. Mas estão apenas papagaiando o discurso do poder.