Após a alteração, o art. 243 da Constituição passa a ter a seguinte redação:
“As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.”Isso é bastante interessante do ponto de vista libertário. Primeiro, uma pessoa que escravize outras em suas terras pode ser justamente expropriada.
Para um libertário, uma terra sem dono é de quem a ocupou e trabalhou nela. Se você for obrigado a continuar a trabalhar em uma terra que já utilizava ou se for levado a um novo local e obrigado a trabalhar à força, o terreno é legitimamente seu, não do escravizador.
Mesmo que o escravocrata fosse legítimo proprietário anteriormente, ao violar seus direitos e lhe obrigar a usar a terra, os direitos dele à terra perdem a legitimidade. Portanto, a expropriação da terra do escravocrata em favor dos escravizados é uma medida justa.
Entretanto, há dois riscos significativos na aplicação desse princípio: 1) a expropriação não beneficia as vítimas, aumentando o controle do estado sobre o acesso à terra; 2) a definição de trabalho escravo é problemática.
É preocupante que a expropriação da terra no projeto não seja uma medida de reparação pela escravidão sofrida, mas sim uma política de desapropriação pelo interesse social em promover reforma agrária ou habitações populares. Mesmo que seja dada prioridade ao assentamento das pessoas que foram anteriormente escravizadas, isso não muda o fato de que, para a lei, isso é uma circunstância de política de terras, não de direito pessoal da vítima de um crime.
A principal repercussão prática disso seria na capacidade das vítimas de disporem sobre essas terras, uma vez que os assentamentos para reforma agrária ou habitações populares são organizados e regulamentados pelo governo.
A medida pode servir para reforçar o controle obsessivo do Estado brasileiro sobre o acesso à terra dos mais pobres, privilegiando o “interesse público” de uma categoria genérica de “pessoas que necessitam de reforma agrária ou de habitações populares”, não os interesses reais dos indivíduos que efetivamente foram vítimas e que deveriam ter direito pleno às terras nas quais foram escravizados.
Além disso, é o próprio controle do estado sobre o acesso à terra que tem criado pessoas que precisam da reforma agrária ou de habitações populares. A primeira coisa que o estado (português à época) fez ao ocupar o Brasil foi dividi-lo em capitanias hereditárias e criar o latifúndio. A grilagem só existiu na Amazônia devido à vulnerabilidade dos sistemas de registro imobiliário no campo, em grande medida voltados para “títulos artificiais de propriedades” (isto é, não apropriadas originalmente por uso e ocupação), o que, no auge, possibilitou que “Carlos Medeiros”, uma pessoa que nunca existiu, tivesse em seu nome 1,5% do território nacional, o equivalente à soma dos territórios de Portugal e Bélgica.
Enquanto isso, a falta de regularização da propriedade dos mais pobres, no campo ou na cidade – historicamente, de indígenas e quilombolas – contribuiu para manter esses grupos na pobreza e vulnerabilidade social.
A garantia constitucional de desapropriação com indenização é muito pouco, um sistema que se presta a manipulações graves, que serve a “um modelo de urbanização que expulsa os pobres dos centros urbanos e empurra o valor do trabalho ainda mais para baixo”, como a Copa escancarou.
Quanto à expropriação de terras sem indenização, desde 1988 até a aprovação desta PEC, só havia uma única hipótese: o cultivo de psicotrópicos. O governo quis desestimular a produção interna (protegendo assim o cartel de traficantes que controlam a importação de várias drogas ilícitas), para sustentar seu combate falido às drogas, que, além de ter tornado várias cidades do país campeãs mundiais em homicídio, ainda mata crianças deficientes por negar acesso até mesmo ao uso medicinal da maconha. Sua desobediência civil, com a produção de psicotrópicos que podem salvar crianças com doenças raras, pode fazer com que sua terra seja expropriada pelo governo sem indenização.
Em relação à nossa legislação, a definição de “trabalho escravo” não é igual à de “trabalho forçado”. Nosso Código Penal criminaliza a “redução a condição análoga à de escravo”, que abarca: 1) sujeição a trabalho forçado; 2) servidão por dívidas (limitação da locomoção em razão de dívida); 3) jornada exaustiva; 4) condições degradantes de trabalho.
As duas primeiras hipóteses abarcadas em nosso Código Penal são válidas. Mas as duas últimas não são tão claras, uma vez que condições ruins de trabalho, mesmo que em algumas circunstâncias possam até derivar de “graves fraudes trabalhistas”, não são trabalho forçado.
A abertura do conceito de “condições análogas a de escravo” e seu preenchimento por meio de regulamentação do Ministério do Trabalho significa que é o governo federal quem tem o poder de definir as hipóteses. O descumprimento de determinados regulamentos trabalhistas estatais já seria o suficiente, independentemente de uma investigação sobre os costumes locais, a voluntariedade das avenças ou peculiaridades dos casos.
Essa insegurança jurídica inclusive motivou o acréscimo do “na forma da lei” no texto aprovado, de modo que a norma dependerá de regulamentação posterior sobre o que é “explorar trabalho escravo”.
Assim, ainda que possamos ficar contentes pelo fato de que um princípio genuinamente libertário ter sido incluído na Constituição, há preocupações legítimas quanto a sua aplicação, uma vez que, ao invés de tornar a expropriação uma reparação aos lesados pelo trabalho forçado, a transformou em uma política de redistribuição de terras sob controle do Estado.