O que você faria se sua filha tivesse uma doença incurável? Uma filha destinada a passar o resto da vida com ataques epiléticos frequentes não-controláveis por nenhum medicamento existente em seu país? Ou, pior: cujo medicamento pode até ser importado, mas seu país o proíbe e o tacha de criminoso por fazê-lo? O que você faria se, para controlar a epilepsia de sua filha e dar a ela o mínimo de bem estar, tivesse que ir de encontro ao estado e importar maconha medicinal ilegalmente?
Essa é uma história verdadeira. Katiele luta para tratar a epilepsia de sua filha de 5 anos com CBD (canabidiol), uma substância derivada da maconha e proibida no país. Como parte da guerra às drogas à brasileira, os burocratas da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) decidiram que o uso medicinal da maconha é inadmissível em todo o território nacional.
Como Katiele explica no vídeo intitulado Ilegal, não há qualquer outro remédio autorizado no Brasil que pudesse controlar a epilepsia de sua filha. Nenhum. Mas ela descobriu que o CBD é uma alternativa eficaz. O obstáculo: o governo brasileiro proíbe o uso recreativo e medicinal da maconha. O que fazer? “O desespero de você ver a sua filha convulsionando todos os dias, a todos os momentos, é tão grande, que nós resolvemos encarar e trazer da forma como fosse possível, mesmo se fosse traficando, e foi o que a gente fez”, diz ela.
Para o estado, essa mãe agiu criminosamente. Para qualquer um com senso mínimo de justiça, ela apenas fez a coisa certa. Há momentos em que a única alternativa para pessoas decentes é transgredir a lei, inclusive por meio de “desobediência civil empreendedora”. Se você, ferindo a lei, não prejudica ninguém e ainda beneficia pessoas, gerando valor para a sociedade, isso por si só mostra que a referida lei impede o bem estar da sociedade gerado pela dinâmica da livre produção, troca e associação entre pessoas livres. Ainda mais quando o valor é a saúde de uma criança com epilepsia.
Na última quinta-feira (03/04), Katiele e sua filha obtiveram uma vitória judicial. Em um marco histórico, decisão liminar da Justiça Federal em Brasília determinou que a Anvisa entregue à família de uma criança com epilepsia o CBD.
Mas esse não é o fim da luta. A agência federal ainda pode recorrer da decisão, o uso da maconha medicinal continua, de forma geral, proibido no país, e a guerra às drogas, com todas as suas consequências nefastas, continua. Aparentemente, neste país, você tem de processar o estado para pedir autorização para salvar a sua filha de um sofrimento evitável, apenas porque algum burocrata resolveu que maconha é um grave mal.
Imagino o sofrimento desta mãe, por ver sua filha sofrer daquela maneira. Minha irmã mais velha tinha uma síndrome de nascença, além da própria epilepsia. Seria muito triste vê-la em uma condição de convulsão permanente que não poderia ser tratada, ainda mais porque alguém está impedindo qualquer esperança de acesso ao remédio.
Perceba: não é que o remédio não exista. Não é que a mãe não tenha dinheiro e não possua meios para adquirir o remédio. Se não tivesse dinheiro, ainda haveria esperança: poderia obtê-lo por meio de doações ou instituições filantrópicas especializadas. O problema é que há um ente chamado estado para se interpor entre ela e qualquer chance de obter o remédio legalmente.
Em texto para o C4SS, Marja Erwin problematizou como uma sociedade livre, mesmo anarquista, lidaria com os deficientes, se é possível que “as trocas por si só, [não sejam] capazes de incluir a todos com deficiências”. Mas sociedades estatistas têm negado sistematicamente o acesso a medicamentos ou tratamentos com base em critérios paternalistas e são muitas vezes o maior obstáculo para o acesso à saúde das pessoas, seja inibindo a inovação médica ou encarecendo artificialmente os tratamentos.
Tentar minimizar o sofrimento de alguém querido não deveria ser proibido. Ilegal deveria ser o estado-babá condenar a filha de Katiele a um sofrimento perpétuo, através da proibição da importação do CDB. Ilegal deveria ser essa entidade cujos atos dentro de suas fronteiras lembram a inscrição na porta do inferno eterno retratado por Dante Alighieri: “Deixai toda esperança, vós que entrais.”