Depois da concentração, na Praça do Derby, no centro do Recife, a Marcha das Vadias avançou em direção à Avenida Conde da Boa Vista, uma das mais importantes vias da capital pernambucana. A União da Juventude Socialista (UJS) estava lá, levou cartazes, palavras de ordem, panfletos. Consegui ouvir de quem vinha atrás uma pergunta perplexa: “O que a UJS está fazendo aqui?”
Era pertinente. Afinal, a UJS, ligada ao PCdoB — que, por sua vez, é basicamente uma filial do PT —, não tem sido, historicamente, a mais consistente das organizações em defesa dos direitos e das liberdades femininas. Pudera, às vezes as necessidades de defesa do status quo e do governo passam por cima com frequência de quaisquer outras considerações.
Porém, compareceram à Marcha e trocaram panfletos conosco. Os panfletos de nosso grupo libertário, o Coletivo Nabuco, vinham com o texto “Seduzidas e desonradas“, da anarco-individualista e feminista brasileira Maria Lacerda de Moura. O panfleto da UJS, por sua vez, vinha com um texto contra a Copa do Mundo e terminava com um apelo, provavelmente para aplacar o público feminista presente: “Por mais mulheres nos espaços de poder!”
Era o mesmo slogan que o grupo levava em sua maior faixa durante a manifestação. Ao conversar com os presentes, imediatamente invertemos o slogan: “Por menos espaços de poder para oprimir as mulheres!”
O slogan da UJS transbordava uma falsa compreensão do que caracteriza a luta pela emancipação feminina. De acordo com ele, os problemas femininos não passam de problemas de representação, que podem ser aliviados com a presença de uma porcentagem de mulheres dentro do estado e de suas instâncias decisórias. É um entendimento cotista da sociedade: se as mulheres compõem 50% da população, elas devem compor, ao menos, 50% do governo.
É também uma compreensão que mantém intacta toda a estrutura de poder que garante que as mulheres continuem a ser oprimidas não apenas pela mão de ferro do estado, mas também pela cultura patriarcal dominante, que pretende ditar qual o comportamento, as roupas, os trabalhos, os estudos, os hobbies, os trejeitos e as atividades sexuais adequadas a mulheres.
Representação dentro do governo não é procuração para autoridade política real e significativa. Uma analogia com o racismo pode deixar o problema com essa visão mais óbvio. Cerca de 7,6% da população brasileira é composta por negros. Se destinarmos 7,6% dos postos do governo aos negros, o que muda em sua situação política? Quase nada. O próprio número de indivíduos que se intitulam como negros em pesquisas demográficas é artificialmente baixo por conta da cultura racista em que estamos inseridos. A entrada proporcional de um grupo na estrutura do estado, portanto, não resolve o problema mais amplo — a cultura racista (ou sexista) realimenta a estrutura de poder de que o estado faz parte.
Da mesma forma, significa muito pouco o fato de que são reservadas cotas em universidades públicas para negros, uma vez que as universidades públicas, em si, são espaços necessariamente excludentes e que jamais atenderão às necessidades amplas da população negra, mas somente às de uma pequena minoria (geralmente já privilegiada), não importando sua composição étnica. É uma maquiagem do sistema.
Assim, o que precisamos não é de representação dentro do poder, porque o poder significa inexoravelmente força e opressão. A estrutura de poder atual é sustentada pela opressão interseccional de diversas minorias (que afeta de forma qualitativamente diferente cada uma delas), combinada com a opressão sistemática, porém menos manifesta, à população como um todo.
A participação de mulheres em espaços de poder deve ser vista não como força precipitadora das mudanças, mas como causada pelas mudanças. São as mudanças culturais e sociais que abrem as portas para as mulheres, mas sua participação nos espaços de poder garante poucas conquistas palpáveis para as mulheres.
Por isso, não precisamos de diversidade no poder, mas de menos poder.
A opressão é a raison d’être do poder. Não importa a sua composição de gênero.