A afirmativa do ex-deputado americano Barney Frank de que o “governo é apenas uma palavra para descrever aquilo que decidimos fazer juntos” está ganhando tração novamente entre os círculos mais desesperados por uma resposta engraçadinha para aqueles que enxergam o governo como ameaça. Mas qualquer um que afirme algo tão idiota com seriedade é um imbecil completo que não deve sair de casa sem a supervisão de um adulto responsável.
Para perceber como essa afirmativa é estúpida, vamos aplicá-la a alguns exemplos históricos concretos. Se “o governo é tudo aquilo que decidimos fazer juntos”, então “nós” provavelmente decidimos usar as tropas americanas para acabar com a greve da Pullman Company, instituir estado de exceção na maioria dos estados do oeste e usar a Guarda Nacional para empreender uma guerra contra os mineiros grevistas. “Nós” provavelmente decidimos juntos prender os prisoneiros políticos durante a Primeira Guerra Mundial e os nipo-americanos na Segunda Guerra Mundial. “Nós” provavelmente decidimos derrubar Diem e forjar o incidente do Golfo de Tonkin para arrumar desculpas absurdas para entrar em guerra contra o Vietnã e usamos os “bebês retirados de incubadoras” e as “armas de destruição em massa” como justificativa para entrar em duas guerras contra o Iraque. “Nós” decidimos não saber os detalhes de tratados como a Parceria Trans-Pacífico, negociado em segredo pelo representante comercial dos Estados Unidos e as corporações globais.
Eu repito, sem medo de errar: qualquer um que diga o que Barney Frank disse é um idiota.
Além disso, se o governo é apenas “aquilo que decidimos fazer juntos”, é estranho que ele se esforce tanto para garantir que nós — o público soberano a quem supostamente ele serve — não decidamos nada de que ele desaprove. Há décadas o governo americano trata a opinião pública como algo a ser controlado com o mesmo tipo de propaganda e as mesmas técnicas de desinformação que nós usaríamos para gerenciar as percepções de uma população ou um governo inimigo.
A ideia de que “nós” somos capazes de “decidir juntos” fazer qualquer coisa pressupõe que somos capazes de nos comunicar uns com os outros, sem tentativas externas de perturbação ou sabotagem pelo governo com que trabalhamos, para decidir o que dizer ao governo para fazer. A Operação COINTELPRO foi usada para sabotar as organizações “radicais de esquerda” nos anos 1960 porque o governo americano enxergava parte do espectro político que ela ocupava como ilegítima e pretendia higienizar aquela porção do espectro político do mercado de ideias.
Nos últimos anos, o Congresso tem aprovado explicitamente operações secretas do Pentágono de vigilância da mídia para gerenciar a opinião pública dentro dos EUA da mesma forma que operava anteriormente fora do país. O ex-Conselheiro de “Segurança Nacional” da administração Clinton Sandy Berger advertia em 2004, a respeito do declínio do apoio popular à Guerra do Iraque: “Temos coisa demais em jogo (…) para perdermos o povo americano.” Não parecia que o governo fosse esperar que o povo americano “decidisse junto” se a Guerra do Iraque era uma coisa boa, certo?
E agora o Pentágono está conduzindo pesquisas sobre as causas que levaram ao descontentamento e à formação da oposição durante os levantes da Primavera Árabe na Tunísia e no Egito, de forma que possa evitar que esse “contágio social” (palavras deles) ocorra nos EUA, é claro. Considerando que o movimento Occupy foi diretamente inspirado pelo modelo organizacional da Primavera Árabe, pelo 15M espanhol e pelos levantes da Praça Syntagma na Grécia, não se trata de uma mera questão acadêmica. Na verdade, o Pentágono menciona especificamente “ativistas sociais não-violentos” e “causas radicais” promovidas por ONGs pacíficas.
Então, se o governo não é “o que decidimos fazer juntos”, a quem ele serve? Todas as aões descritas acima fazem muito mais sentido se considerarmos o governo, nas palavras de Marx, como o “comitê executivo da elite capitalista”. Essa deveria ser — e era — uma definição boa o bastante para os libertários de livre mercado. Por exemplo, Franz Oppenheimer chamava o estado de “meios políticos” pelos quais uma classe de capitalista extraía rendas do resto da sociedade através da escassez artificial, dos monopólios e direitos de propriedades mantidos pelo governo.
Logo, o estado não somos “nós”. São eles.