Ao sair de casa aqui no Recife então, porém, uma sensação prevalecia: nada havia mudado. Pernambuco é um dos estados mais violentos do Brasil, e Recife é a 39ª cidade mais perigosa do planeta, com 36,82 homicídios a cada 100 mil habitantes. Com o funcionamento normal da polícia, nós estamos em constante perigo. Sem ela, o perigo havia multiplicado ou nada havia mudado?
Mudou a percepção das pessoas, pensando que não haveria punição a seus crimes. Todos saíram de casa e tomaram as ruas, roubaram. Grandes lojas moveram seus estoques e foram capazes de se proteger, muitos pequenos comerciantes perderam tudo. A situação parecia ter saído do controle, mas o governo decidiu exercer seu monopólio da violência de modo radical e colocou tanques de guerra nas ruas. Imagino que esperassem explodir alguns que tenham roubado uns aparelhos de TV — a Copa está chegando, TVs são aparelhos cobiçados.
Mas a percepção de que não havia polícia era muito mais forte do que a realidade: a verdade é que Pernambuco nunca tem polícia. Se tem, é vista como ameaça, não como proteção, por mais de 80% da população. Em nossas vidas normais, dificilmente temos a sensação de que a polícia nos protegerá, e na quinta-feira nada tinha mudado nesse aspecto. Se, num dia qualquer, as pessoas decidissem fazer o mesmo que fizeram na quinta, elas seriam capazes e sairiam impunes. Elas só não notaram sua própria força ainda, mas a polícia é apenas um pequeno número de pessoas, incapazes de lidar com uma quantidade infindavelmente maior de pessoas que não querem obedecer suas ordens.
O fato de a polícia ter parado de trabalhar e estimulado a desordem parecia apontar para a essencialidade da polícia, mas nos disse justamente o contrário. No Recife, morreram 1416 pessoas em 2013 — quase 4 pessoas por dia. No dia 15, de completa anomia e anormalidade, foram registradas 7 mortes. A greve deveria nos fazer parar para pensar que, no fim das contas, a PM é um exercício de futilidade, uma instituição que sobrevive mais pelo nome que por seus resultados.
Porque a ordem só subsiste quando as pessoas acreditam que ela subsistirá; se as pessoas acreditam que é o governo, ou seu braço policial, que mantém a ordem, essa ordem só continuará de pé enquanto o governo estiver de pé. A ordem não se mantém pela força, mas pela cultura — assim como os governantes. Se as pessoas, coletivamente, deixarem de acreditar que a polícia é necessária, haverá ordem e haverá liberdade, sem saques, depredações e mortes. O poder, portanto, é simplesmente uma ficção pública, algo que existe mas pode desaparecer com uma simples mudança na opinião geral.
Ayn Rand diria que o poder só subsiste com a sanção da vítima. La Boétie, por sua vez, pergunta que poder o governante tem que não aquele que damos a ele. David Hume conclui que o poder é sustentado por pouco mais que a opinião pública, enquanto Gramsci sabe que a ordem existente é legitimada pela cultura. E Varys, em A Fúria dos Reis (com o roteiro um pouco alterado para a série Game of Thrones), coloca a questão da seguinte forma, ao conversar com Tyrion:
— O rei, o sacerdote, o rico… Quem sobrevive e quem morre? A quem obedecerá o mercenário? É um enigma sem resposta, ou melhor, com muitas respostas. Tudo depende do homem que tem a espada.Na quinta, as pessoas usaram o poder que sempre tiveram e o usaram para o mal. E, ao final do dia, decidiram entregá-lo de volta para a polícia, que anunciou o fim de sua greve — mas se o povo não quisesse devolver o poder, o que a polícia faria? Na próxima greve, talvez as pessoas passem a acreditar que podem viver normalmente sem ela. Porque a ordem existe onde os homens acreditam que ela existe.
— E, no entanto, ele não é ninguém — Varys concluiu. — Não tem uma coroa, nem ouro, nem o favor dos deuses, mas apenas um pedaço de aço afiado.
— Esse pedaço de aço é o poder da vida e da morte.
— Precisamente… E, no entanto, se são realmente os homens de armas que nos governam, por que fingimos que nossos reis têm o poder? Por que um homem forte com uma espada obedeceria a um rei criança como Joffrey, ou a um idiota encharcado em vinho como o pai?
— Porque esses reis crianças e idiotas bêbados podem chamar outros homens fortes, com outras espadas.
— Então são esses outros homens de armas que têm o verdadeiro poder. Ou será que não? De onde vieram as suas espadas? Por que é que eles obedecem? — Varys sorriu.
(…)
— Pretende responder ao seu maldito enigma, ou quer apenas fazer com que a minha dor de cabeça piore?
Varys sorriu.
— Eis, então. O poder reside onde os homens acreditam que reside. Nem mais, nem menos.