No último dia 11 de julho, o governo federal revogou edital para leiloar linhas de transporte rodoviário interestadual para empresas selecionadas. O governo estava tentando escolher empresas para operar um conjunto de rotas, mas o procedimento, iniciado em agosto de 2013 com término previsto para janeiro de 2014, estava suspenso por liminares judiciais.
Parece um ato de pouca importância, mas que na verdade sinaliza uma nova postura do governo federal, disposto a ceder seus poderes pela pressão das circunstâncias.
Já no mês passado, a presidente da república havia sancionado a Lei nº 12.996/2014, que, em seu artigo 3º, modificou o modelo de autorização para empresas realizarem transporte rodoviário interestadual.
A diretora da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Ana Patriza Gonçalves Lira, explicou recentemente qual é o objetivo: “Se tiver 30 ou 40 empresas querendo fazer Rio-São Paulo, e elas se habilitarem, vamos autorizá-las. Depois, o mercado se ajusta.”
Ou seja, ao invés de tentar leiloar linhas para trechos predeterminados, que seriam obtidas por empresas específicas, o governo está anunciando que permitirá que empresas interessadas façam suas próprias rotas e as operem, desde que cumpram com requisitos mínimos de segurança e qualidade.
A revogação daquele edital no último dia 11, portanto, foi apenas o último suspiro de várias tentativas do governo, desde 2008, de realizar essas licitações de rotas interestaduais predeterminadas para empresas de transporte rodoviário.
A tendência natural do governo seria manter um sistema caracterizado pelo capitalismo de conchavo e por uma burocracia centralizadora, mas, pressionado por circunstâncias desfavoráveis e pela inviabilidade de manter um sistema deficitário de controle sobre o transporte coletivo interestadual, foi forçado a essa devolução de poder à sociedade.
Mas nem tudo são flores sob o novo modelo: as empresas ainda terão capacidade para manipular o sistema, ao influenciar esses requisitos mínimos de segurança e qualidade, além de que existirão tarifas máximas para as rotas durante 5 anos, após os quais as tarifas serão liberadas e punidos apenas eventuais abusos (possivelmente ligados ao Direito antitruste brasileiro).
O capitalismo de conchavo não foi completamente expurgado, mas houve um passo a mais em direção à mais liberdade.
E isso leva a uma reflexão: o Leviatã ameaçador não tem como se expandir infinitamente à custa da sociedade. Existem circunstâncias sobre as quais nada mais resta ao governo senão abrir mão da centralização burocrática e do conluio com empresas privadas específicas.
Alguns pensadores da filosofia política e da economia institucional já dedicaram observações importantes sobre este assunto.
Jeffrey Tucker escreveu sobre 50 novas tecnologias e práticas institucionais que nos permitem contornar o estado. A inovação seria fundamental para o estado ceder seu poder.
David Friedman comentou que seu caminho ideal para uma sociedade sem Estado seria um no qual instituições privadas gradualmente realocam as instituições do governo, de tal modo que ninguém nem notaria o desaparecimento de um Estado. Tendências rumo à cripto-anarquia digital e à expansão de arranjos legais privados de arbitragem e policiamento podem exercer um papel significativo nisso.
Kevin Carson já destacou que é preciso reverter o processo secular por intermédio do qual estados territoriais centralizados suprimiram supressão de alternativas auto-organizadas da sociedade civil. O caminho seria a construção de instituições sociais alternativas.
Compare agora o cenário traçado por estes autores com os protestos de junho do ano passado, onde milhares de brasileiros saíram às ruas para reivindicar que não houvesse nenhum aumento nas tarifas do ônibus urbano, sendo que o grupo que deu início aos protestos chegava a demandar o “passe livre”.
Aqueles protestos foram menos efetivos para mudar o modelo do transporte urbano municipal do que a pressão das circunstâncias foram para fazer o governo federal espontaneamente mudar o modelo do transporte urbano interestadual.
Um dos motivos é que, à exceção de poucos ativistas libertários, os protestos exigiam mais controle do Estado sobre o transporte coletivo urbano. O resultado foi, em várias cidades, o congelamento do preço da passagem, temporariamente, mas a manutenção de um sistema corporativista que beneficia apenas algumas empresas e políticos em conluio nos municípios do país, sistema que não foi questionado pela maioria. Muitos dos manifestantes esqueceram que o transporte clandestino em várias grandes cidades tem oferecido serviços alternativos ao transporte público autorizado pelas prefeituras, atendendo a demanda.
Portanto, um ano após os protestos, constata-se que, para mudar o modelo de transporte coletivo em nosso país e devolvê-lo para as pessoas, é preciso reivindicar do estado o poder que ele roubou de todos nós, de livremente fornecer e comprar serviços de transporte por meio de associações voluntárias e trocas livres.