Um artigo de Walter Frick no Harvard Business Review (“Understanding the Debate Over Inequality, Skills, and the Rise of the 1%“, 21 de dezembro) divide o debate sobre a desigualdade entre aqueles (principalmente CEOs e outros corporativistas) que consideram que ela resulte de um descolamento entre a oferta e a demanda por certas qualificações e aqueles que enxergam a questão como um problema de “instituições, regras e poder político”.
A primeira posição pode ser colocada da seguinte forma: “Os trabalhadores atualmente encaram a concorrência a nível global e até mesmo a ameaça de automação. Aqueles que podem trabalhar com a tecnologia e têm as qualificações procuradas em campos como programação de computadores têm êxito no mercado de trabalho. Aqueles que não possuem um diploma universitário ou habilidades especializadas têm problemas”. Frick admite que, apesar de consideráveis evidências para apoiar essa posição, ela é insuficiente sem levar em consideração questões institucionais de poder. Por outro lado, ele enxerga riscos em avançar demais o argumento estrutural a ponto de negar a oferta e a demanda.
Porém, talvez a oferta e a demanda por habilidades, em vez de ser um dado, reflita em si mesma a estrutura de poder. Dado que o mecanismo de preços possa funcionar, o preço de qualquer coisa — inclusive do trabalho, refletirá o equilíbrio entre a quantidade provida e a quantidade demandada no momento da troca. Isso não significa muita coisa. As questões estruturais do poder são muito mais importantes para determinar qual será a quantidade real fornecida em relação à quantidade demandada e qual será o equilíbrio de poder entre compradores e vendedores.
Quais habilidades e em que medida elas serão demandadas não são apenas resultados espontâneos “do mercado”. Elas refletem a decisão consciente de grandes instituições planejadas centralmente — conhecidas como corporações — em relação a que tecnologias de produção serão adotadas, quais estratégias de substituição de capital e de desqualificação do trabalho serão empregadas, e assim por diante. E a oferta de mão de obra com essas habilidades, como a da maioria dos fatores de produção corporativos, é altamente influenciada pelo papel do estado no sistema capitalista: sua função é subsidiar a extração de matérias-primas e a provisão de infraestrutura de transporte, externalizando o custo da produção de mão de obra sobre os pagadores de impostos.
Até mesmo a natureza das instituições que produzem e contratam a mão de obra é determinada por uma longa história de alianças entre o estado capitalista e os empregadores. Não é acidente que a maior parte da mão de obra qualificada seja contratada por departamentos de recursos humanos de grandes corporações ao invés de se juntar a cooperativas fabris com máquinas de controle numérico computadorizado (CNC) portáteis ou a redes de produção interligadas de programadores.
A economia assalariada é dominada por empregadores capitalistas há mais de dois séculos porque, na véspera da Revolução Industrial, o estado capitalista na Grã-Bretanha, em conluio com os grandes latifundiários, tirou da grande maioria da população seus direitos tradicionais à terra e a forçou a entrar no mercado de trabalho assalariado. Depois disso, o estado utilizou meios totalitários de controle social para evitar que os trabalhadores se associassem livremente ou que viajassem de uma paróquia a outra em busca de melhores oportunidades de emprego. A economia americana é dominada pelos empregadores corporativos porque o estado americano, desde a metade do século 19, ativamente subsidia e promove a concentração da vida econômica.
Assim, não é acidente que a maioria dos trabalhadores qualificados consigam treinamento no sistema de educação secundária ou superior, cuja função primordial é o processamento de “recursos humanos” artificialmente baratos para empregadores corporativos às custas dos pagadores de impostos.
O sistema de credenciamento está estabelecido não apenas para tornar a mão de obra treinada artificialmente abundante e barata para os empregadaores, mas também para levantar barreiras para dificultar o livre fluxo de conhecimento e habilidades horizontalmente entre os trabalhadores. O estudante tem que assumir grandes dívidas para pagar por um currículo que é montado pela instituição educacional em conluio com os empregadores e, ao se graduar, percebe que seu poder de negociação foi reduzido pelo fato de que ele está pronto para entrar nas engrenagens do seu empregador e não tem muitas alternativas.
Imagine uma economia comunitária micromanufatureira em que trabalhadores qualificados fossem entrevistados por seus futuros colegas em um coletivo autogestionário. Ali, as habilidades do trabalhador seriam obtidas através de credenciais cumulativas em programas de aprendiz e de treinamento interno, de acordo com seus julgamentos e interesses individuais. Quais as credenciais necessárias seria uma questão a ser negociada. O candidato e a cooperativa estariam em pé de igualdade. As qualificações necessárias seriam muito mais baratas e fáceis de obter, ausentes todas as barreiras à livre transmissão de conhecimento.
A oferta e a demanda não são valores autônomos que “simplesmente acontecem” — são resultados de séculos de história, “escritos em letras de sangue e fogo”.