Numa palestra para o Mises Circle este mês (“Open Borders Are an Assault on Private Property“, 10 de novembro) apresentada, apropriadamente, no local de trabalho regular do xerife Joe Arpaio (“o mais durão dos Estados Unidos”), Rockwell reafirmou um argumento formalizado anteriormente por Hoppe:
Acreditamos em direitos de propriedade privada. Ninguém tem “liberdade de expressão” em minha propriedade, já que eu determino as regras e posso, como último recurso, expulsar a pessoa. Ela pode dizer o que quiser em sua propriedade e na propriedade de qualquer um que queira escutar, mas não na minha.A partir daí, Rockwell continua a elaborar um argumento cujas premissas básicas são — afirmo sem chance de erro — absolutamente imbecis:
O mesmo princípio se aplica à liberdade de movimento. Os libertários não acreditam nesse princípio em abstrato. Eu não tenho a liberdade de entrar em sua casa (…). Como no caso da “liberdade de expressão”, a propriedade privada é o fator relevante aqui. Eu posso me movimentar entre quaisquer propriedades que eu possua ou cujos donos permitam a minha presença. Eu não posso simplesmente entrar onde quiser.
Agora, se todos os lotes de terra em todo o mundo fossem propriedade privada, a solução para o problema imigratório seria evidente. Na verdade, seria mais preciso afirmar que não haveria qualquer problema imigratório, uma vez que os movimentos de pessoas teriam que ser consentidos pelos donos de cada local.Contudo, essa premissa inicial é absurda. Como Franz Oppenheimer e Albert Jay Nock alegavam, não é possível que toda a terra do mundo seja propriedade privada através de meios legítimos.* A única maneira pela qual todos os lotes de terras podem chegar a ser propriedade privada é o que Oppenheimer chamou de “apropriação política” e Nock chamou de “propriedade legislada”. Não é coincidência, como ambos argumentaram, que a apropriação universal da terra seja um pré-requisito para a exploração econômica. Apenas quando as pessoas são impedidas da possibilidade de ocupar e subsistir em terras vagas e quando os empregadores ficam protegidos da possibilidade do autoemprego, é possível forçar as pessoas a aceitarem empregos nos termos desvantajosos que são oferecidos pelos proprietários.
Isso diz muito sobre o tipo de pessoa cujo sonho é um mundo em que não haja um lugar sem dono onde colocar os pés sem a permissão de outra pessoa.
Rockwell cita Murray N. Rothbard, que similarmente afirma em Nations by Consent: Decomposing the Nation State:
Se todo lote de terra em um país fosse de propriedade de uma pessoa, um grupo ou uma corporação, isso significaria que ninguém poderia entrar a não ser que fosse convidado e pudesse alugar ou adquirir uma propriedade. Um país totalmente privatizado seria tão fechado quanto os proprietários particulares desejassem. Parece claro, portanto, que o regime de fronteiras abertas que existe de facto nos Estados Unidos e na Europa Ocidental não passa de uma abertura compulsória pelo estado central, uma vez que o estado é dono de todas as ruas e terras públicas, não representando portanto os desejos dos proprietários.Esse é o mesmo Rothbard que, em sua época menos reacionária e moralmente repugnante, denunciou o que chamava de propriedade feudal e a monopolização das terras desocupadas. De seu livro Ética da Liberdade:
Portanto, há dois tipos de títulos de propriedade eticamente inválidos: o “feudalismo”, no qual há uma agressão contínua pelos detentores dos títulos às terras contra os camponeses que de fato transformam o solo; e o domínio das terras, em que títulos arbitrários à terra virgem são usados para afastar os transformadores da terra. Podemos chamar as duas agressões de “monopólio da terra” — não no sentido de que uma pessoa ou um grupo possui toda a terra da sociedade, mas sim de que privilégios arbitrários à propriedade da terra são afirmados em ambos os casos, entrando em conflito com a regra libertária da não-propriedade da terra a não ser por aqueles que efetivamente a transformaram e por seus cessionários. (Tradução nossa.)Repito: não há qualquer maneira possível pela qual todas as parcelas de terra possam passar à propriedade privada, a não ser pelo monopólio.
De qualquer modo, continuemos. Rockwell lamenta:
Na situação atual, os imigrantes têm acesso às ruas públicas, ao transporte público, aos prédios públicos e assim por diante. Junte a isso todas as outras restrições estatais aos direitos de propriedade e o resultado é um deslocamento demográfico artificial que não ocorreria em um livre mercado. Os proprietários são forçados a se associar e a fazer negócio com indivíduos que, em outra situação, evitariam.Rockwell continua:
Para analisarmos corretamente e chegarmos à conclusão libertária correta, devemos observar mais atentamente o que a propriedade pública realmente é e quem é que deve ser seu verdadeiro dono.Logo, a ideia básica é que todas as ruas são “propriedade privada” da maioria, que tem direito de restringir o ir e vir por elas de acordo com sua vontade. Completo ridículo.
Certamente não podemos dizer que a propriedade é do estado, uma vez que o estado não pode legitimamente possuir qualquer coisa. O estado adquire suas propriedades pela força, normalmente por intermédio dos impostos. os libertários não podem aceitar esse tipo de aquisição de propriedade como legítima, uma vez que ela envolve a iniciação do uso da força (a extração de dinheiro) contra pessoas inocentes. Logo, os títulos de propriedade do governo são ilegítimos.
Porém, não podemos dizer também que a propriedade pública não tenha dono. A propriedade que está em posse do ladrão não deixa de ter dono, mesmo que, no momento, seu proprietário legítimo não a possua. O mesmo vale para a chamada propriedade pública. Ela foi comprada e desenvolvida com o dinheiro tomado dos pagadores de impostos. São eles seus donos verdadeiros.
Primeiramente, é absurdo afirmar que todos os direitos de acesso às vias onde as ruas estão situadas foram “roubados” de proprietários privados. A maior parte dessas vias são o que Roderick Long chamou de “propriedade pública“, que foram coletivamente apropriadas e existiam na forma de commons desde o princípio. As grandes estradas, na maior parte dos casos, são canais naturais que se baseiam na topografia da terra, sendo compostas pelos mesmos caminhos que já eram de uso comum desde épocas imemoriais (desde, pelo menos, as trilhas nativas pré-colombianas na America do Norte e do paleolítico no Velho Mundo). As ruas das cidades foram construídas como vias comuns na época dos assentamentos e jamais foram propriedade privada.
Não há fundamentos óbvios para a crença de que os direitos às vias devam ser “propriedade privada” coletiva de qualquer grupo finito de seres humanos que ocorrem de viver nas cidades em que elas estejam ou dos distritos pelas quais as ruas passam. Acima de tudo, não tem qualquer fundamento a ideia de que a maioria das pessoas dessas cidades ou distritos devam ter poder de veto sobre quem viaja por essas vias. Na verdade, dada a composição cambiante da população, a única forma de apelar para um grupo de proprietários específicos de uma via seria por referência a algum tipo de pertencimento à comunidade, incorporado em uma instituição municipal definida por lei. Por que não tornar certidões de nascimento e casamento obrigatórias para aproveitar o ensejo?!
Já quanto à grande maioria das terras dos Estados Unidos, especialmente a oeste do Mississipi, elas jamais foram propriedade privada até que o estado as capturou. A porção que era de propriedade de seres humanos era, principalmente, a propriedade coletiva das tribos das Primeiras Nações. Além disso, somente uma pequena parte dessas terras foi trabalhada ou alterada por fundos públicos depois de entrar em domínio público. A ideia de que ela deva voltar a ser a “propriedade privada” do povo dos Estados Unidos quando os títulos de propriedade do governo americano forem anulados é ridícula — assim como é absurda a noção de que essas vias devam ser consideradas sem dono até que alguém misture seu trabalho com elas. Assim, com a possibilidade de viajar sem pedir permissão, o modelo de Rothbard-Hoppe-Rockwell de restrição migratória através da propriedade privada é demolido por completo.
Na realidade, seu argumento pode ser usado para o ponto oposto: há grandes porções de terras vagas e baldias que são propriedade privada artificial — frequentemente resultante de concessões estatais –, mantidas por grandes proprietários para fins especulativos. Assim, os “imigrantes ilegais” que atravessam essas terras teriam maior direito às terras do que os atuais “proprietários”.
Talvez a parte mais involuntariamente hilária da diatribe de Rockwell é quando ele usa — de todos os possíveis exemplos! — a União Soviética como advertência dos males das fronteiras abertas e do excesso de liberdade de movimento. Seria de se esperar que ele ao menos tivesse algum respeito profissional pelos soviéticos, já que sua utopia “libertária” é uma versão privada do sistema de passaportes internos da URSS.
Outro momento estranho é aquele em que Rockwell cita Hoppe a respeito de legislações sobre acomodações públicas como uma violação da “liberdade de associação” dos proprietários:
Donos de propriedades comerciais como lojas, hotéis e restaurantes não têm mais a liberdade para excluir ou para restringir o acesso a suas dependências como acham mais apropriado. Os empregadores não têm mais o direito de contratar ou demitir quem desejarem. No mercado habitacional, os proprietários não podem mais excluir inquilinos indesejados. Além disso, associações mais restritas são obrigadas a aceitar membros e ações que violam seus próprios regulamentos.É irônico que Hoppe e Rothbard sejam tão alheios às similaridades entre suas posições entre o controle da liberdade de movimento sobre vias públicas e as provisões sobre acomodações públicas advindas do direito comum que são previstas no Capítulo II da Lei de Direitos Civis dos Estados Unidos. A ideia, no direito comum inglês, era que as hospedarias que abrissem em vias financiadas pelo público eram acomodações públicas, de que se esperava o provimento de serviço ao público geral sem discriminação despropositada. Porém, uma sociedade na qual a maioria possa proibir legitimamente as pessoas de usar as vias é uma sociedade na qual a mesma maioria poderá levantar restrições sobre empresas cujo comportamento desaprovam. Poderiam ser proibidas de transportar bens sobre essas mesmas ruas, ou impedir que os clientes que passam por elas visitem alguns estabelecimentos.
Hoppe e Rockwell imaginam que os costumes sociais que governariam o uso das ruas numa sociedade pós-estatal seriam determinados por homens brancos fanáticos. Contudo, o que ocorreria se a sociedade fosse, na verdade, composta por pessoas decentes que negariam acesso às vias públicas estabelecimentos que se recusassem a servir negros ou pessoas LGBT?
Sua ideia fundamental — que o uso de “ruas” é uma alavanca da maioria para controlar as ações e a existência das minorias desaprovadas — não apenas apresenta oportunidades infinitas para abuso. A própria noção é abusiva e antilibertária, tanto na prática quanto e em espírito. Já é suficientemente ruim que autointitulados “libertários” idealizem uma sociedade em que os chefes de família brancos que são donos de propriedade utilizam seu poder para reencenar uma versão real de O conto da aia, onde todos que não se pareçam com eles podem ser excluídos por sua incapacidade de passar no exame de retina e tirar um visto de viagem junto ao homem que vive numa mansão na colina e possui todas as terras do distrito. Mas imagine como esse arranjo poderia ser usado por Hitler (ninguém usando estrelas douradas sobre as ruas do povo alemão!) ou no Sul dos Estados Unidos durante a época das leis Jim Crow (qualquer pessoa negra que passasse pelas ruas da Associação de Cristãos Brancos sem o visto do empregador tem que passar um ano trabalhando na fazenda como pagamento, sendo deportado logo a seguir).
O mais ridículo é o tom choroso que Rockwell emprega. Ele deixa bem claro que o que é publicado pelos autores do LewRockwell.com são apenas lamentos direcionados ao nicho demográfico patético que representam. Todo o discurso é recheado de autocomiseração (“Não está na moda expressar preocupação com os direitos dos proprietários”; “é comum nos EUA rir daqueles que lançam advertências sobre a imigração em massa”). Escutar a esses lamentos estúpidos sobre a “desconstrução de nossa cultura” de um homem cuja cultura foi imposta sobre o continente pela conquista e pelo genocídio é nauseante. É difícil não imaginar Lew Rockwell como Lyle, do filme Banzé no Oeste (1974), quando pergunta para o Sr. Taggart: “Chefe, eu odeio vê-lo assim. Ajudaria se eu e os rapazes déssemos uns tiros nesses imigrantes ilegais?” “Ah, acho que sim.”
O fato de que esses indivíduos estão tão desesperados por um pretexto, qualquer um, para excluir os imigrantes pardos do México que podem “desconstruir sua cultura” — a ponto de apelarem a um argumento idiota e moralmente falido desse nível — nos diz tudo o que precisamos saber sobre o “paleolibertarianismo”. Não tem nada a ver com as ideias libertárias, mas é motivado por um desejo de controle social por pessoas que parecem e pensam exatamente como elas próprias, onde ninguém tem permissão para fazer qualquer coisa que desaprovem. Seu ódio e seu fanatismo é tão intenso que são pessoas que se tornaram intencionalmente estúpidas, adotando um argumento absolutamente sem sentido.
Mas por que usar tantos subterfúgios? Por que usar a palavra “libertário” é tão importante para eles, quando a liberdade e a diversidade humana são tão detestáveis a eles? Por que procuram com tanto afinco uma brecha pela qual podem colocar toda a sociedade sob o jugo do autoritarismo e controlar o comportamento de todas as pessoas que desaprovam (mas ainda com o rótulo fraudulento de “libertários”)? Por favor, pessoal. A liberdade não é o negócio de vocês. Vocês ficariam muito mais felizes se parassem de se iludir, jogassem para escanteio todos os livros de Locke e Hayek e passassem a ler Mencius Moldbug. Não seria mais necessário fabricar pretextos frágeis para seus desejos teocráticos e neofeudais. Não haveria mais necessidade de justificar seus impulsos de pequenos déspotas com os princípios libertários. Vocês poderiam parar de se enganar e de enganar os outros. Vão para o Lado Negro e acabem logo com esse jogo.
Adendo: Os sentimentos expressados no último parágrafo foram intensificados ao ler outro artigo do LewRockwell.com por Jack D. Douglas (“America’s Disintegrating Culture“, 11 de novembro). Numa longa diatribe sobre a decadência que é respeitar as identidades de pessoas transgênero, Douglas afirma: “Em culturas vivas e vigorosas, as pessoas não apenas chamam as outras pelo que elas querem ser chamadas ou deixam que elas façam o que querem”. E, a partir daí, ele passou a comparar os níveis indesejáveis de liberdade e tolerância em casa com o comportamento “imperialista e totalitário” americano no exterior. Esse é um resumo básico de toda a questão. Se esse tipo de personalidade ridiculamente autoritária é o preço para a vida dentro de uma cultura “viva e vigorosa”, então foda-se a cultura. Quando os libertários começam a falar em termos de Volk e Kulture em vez de autonomia e agência individual, pregando disciplina como cura para a “desintegração” e “decadência” social, pode ter certeza de que a palavra “liberdade” em sua propaganda tem tão pouca substância quanto a palavra Freiheit no vocabulário nazista. Os paleos são um câncer para qualquer movimento que genuinamente respeite a liberdade e a dignidade humana.
*Alguns indagam se toda a terra do mundo poderia ser completamente apropriada por meios legítimos no futuro distante, devido ao crescimento populacional. Porém, o crescimento populacional está caindo e provavelmente será nulo ou negativo até o fim do século. Assim, ao menos pela extrapolação das tendências presentes, parece improvável que o total de terras ocupadas e cultivadas pelos seres humanos se aproxime da maior parte das terras e que engula toda a natureza.