Vamos tirar isso do caminho de uma vez: é hora de abolir a dívida pública. O estado deve ficar impossibilitado, plenamente proibido de emitir títulos e pegar empréstimos. Não existe qualquer justificativa para a existência da dívida pública, que essencialmente implica na contração de dívidas a serem pagas por impostos futuros pagos por terceiros. Pela população; eu e você. A ex-auditora da Receita Federal brasileira Maria Lucia Fattorelli é menos radical. Em entrevista (“‘A dívida é um mega esquema de corrupção institucionalizado’“, Carta Capital, 9 de junho), Fattorelli, que faz parte do Comitê pela Auditoria da Dívida Pública Grega, explica como a dívida pública funciona como uma transferência de renda direta para os ricos e por que uma “auditoria” é necessária para livrar os países de débitos acumulados, que cobram juros sobre juros.
A necessidade de “auditoria”, em contraposição à abolição da dívida, é posição comum entre diversos setores da esquerda (por exemplo, a ex-candidata à presidência Luciana Genro, do PSOL, incluiu a “auditoria cidadã” entre suas propostas de campanha em 2014). Isso ocorre porque a esquerda geralmente tem um medo visceral de deslegitimar o poder e o governo, então é necessário que as dívidas “ilegítimas” sejam abandonadas. Contudo, a prerrogativa que o governo possui de endividar o cidadão continua inquestionada. É, talvez, mais uma manifestação do governismo pusilânime da esquerda: o governo, o poder, é simplesmente impotente diante das forças externas do capital que o obrigam a contrair dívidas crescentes.
Trata-se de um conto de fadas que esconde o fato de que o governo utiliza a dívida pública exatamente para subsidiar os capitalistas. E que também esconde o fato de que se trata de um sistema de canalização de riquezas extremamente eficiente e útil para o governo, que absorve todo o crédito da economia para as empresas que funcionam como seus braços paraestatais. Isso ocorre, às vezes, por motivos estritamente eleitoreiros. Como Fattorelli observou, o governo Lula pagou a dívida externa que o Brasil tinha (com juros de 4%) com emissão de dívida interna, pagando aos capitalistas internos juros de mais de 19%. E isso foi propagandeado como vitória do povo brasileiro.
Claro, isso não passa de subsídio ao capital nacional, que é caro, improdutivo e precisa de aportes crescentes de recursos para se manter economicamente viável. E esses aportes crescentes de recursos inflam a dívida, que requer uma economia em constante crescimento para que seus juros sejam manejáveis. Com o crescimento da dívida como uma bola de neve, nós chegamos na crise fiscal atual, requerendo “ajustes” e “austeridade” — e até mesmo as chamadas “pedaladas” fiscais, o nome ridículo que foi dado às fraudes contábeis do governo de Dilma Rousseff para fechar as contas federais.
Mas a auditoria não é a solução. A solução é o fim da dívida. Não se trata nem mesmo de um calote, mas da deslegitimação do processo de contração de dívida por parte do estado. A presidência deve ser incapaz de endividar os cidadãos, não importa o motivo.
É uma ideia radical, mas a dívida pública deve ser abolida. Para ontem. Ao longo do tempo, além de ter se metamorfoseado num sistema que gera dívidas crescentes e que canaliza o dinheiro dos indivíduos para o bolso dos bancos e capitalistas, a dívida pública também se tornou mais descarada. A dívida se tornou parte da vida nacional, um fato inevitável quando falamos do país. Se os governos anteriores emitiam “títulos de guerra” se queriam entrar em um conflito armado, hoje isso nem mesmo é necessário. Todos os governos podem emitir dívidas ilimitadas.
A dívida nunca é questionada. Ela é sagrada. Nós devemos arranjar um jeito de pagar a dívida, ou ao menos parte dela. Economistas falam em necessidade de ajuste fiscal. Eles temem que se o governo não pagar a dívida, ele ficará sem financiamento no futuro. Claro, isso não é um problema; é uma solução. O governo não deve ter qualquer capacidade de se financiar ou endividar a população.
Alguns temem que o governo não poderá executar seus megaprojetos de infraestrutura sem a possibilidade de se endividar. Fiquem tranquilos: a dívida pública atual brasileira de 3 trilhões de reais também não nos legou qualquer infraestrutura. Alguns temem que a economia atual pode ser dragada para o ralo sem a dívida — mas esse é exatamente o objetivo: acabar com a economia que endivida os pobres para subsidiar os capitalistas.
A dívida pública é injusta. É imoral. É um sistema de redistribuição de renda para os ricos. Ela tem que ser destruída.