Duas vítimas fatais. Esse é o número de mortos que o transporte público de Recife contabiliza em 2015. No dia 16 deste mês, morreu o universitário Harlynton dos Santos, de 20 anos, que, ao tentar subir num ônibus às 23h30, foi arremessado para fora num dos terminais da capital pernambucana. Camila Mirele foi a primeira a morrer este ano, no dia 8 de maio. A estudante de 18 anos foi arremessada para fora de seu ônibus, que andava extremamente lotado e com as portas abertas na BR-101. Com isso, o sistema de transporte coletivo pernambucano já se coloca em posição privilegiada para perpetrar uma verdadeira chacina contra seus passageiros em 2015.
Talvez o mais trágico de toda essa situação seja o fato de que a chacina engendrada pelo transporte público — não apenas em Pernambuco, mas em todo o Brasil — ocorre em doses homeopáticas. Ela acontece através da produção ocasional de vítimas, que podem ser apontadas como “casos isolados”. A violência do transporte público do Brasil é uma violência silenciosa, que vai sugando a vitalidade das pessoas, tornando suas vidas dentro das aglomerações urbanas cada vez mais infernais. Um passo de cada vez, aos poucos. A revolta que as condições precárias do transporte público causam é real, mas silenciosa.
Essa precariedade, que culminou na morte de Harlynton e Camila, não é acidental, mas intencional. Ao longo dos anos 2000, tanto no Recife quanto nas demais metrópoles brasileiras, os governos locais trabalharam diligentemente na cartelização forçada do transporte público. No Recife, isso envolveu a proibição das vans no início da década que, supostamente, atrapalhavam o fluxo do trânsito. As vans e demais coletivos faziam concorrência acirrada aos ônibus municipais aprovados pela prefeitura. Geralmente contavam com preços mais baixos, rotas alternativas e outras facilidades para os passageiros. Com a pressão dos donos dos ônibus estatais, os governos municipal e estadual acabaram com esse sistema e forçaram os passageiros a utilizar somente os ônibus aprovados, abolindo as vans e qualquer outro transporte público paralelo. O processo culminou em 2008 com a criação do chamado consórcio Grande Recife — efetivamente o cartel conjunto do governo com as empresas de ônibus que controla todo o transporte público no Recife.
Um processo similar tomou corpo nas demais capitais brasileiras, onde ocorreram diversas “reestruturações” dos sistemas de transporte público. Invariavelmente, essas reformas incluíam a cartelização forçada dos fornecedores do serviço. Em São Paulo, por exemplo, os perueiros foram obrigados em 2003 a se associarem em cooperativas de ônibus. Isso permitiu com que o governo e os empresários controlassem de perto todas as condições do transporte público, que variavam desde os preços, passando pelo o número de veículos ofertados, suas condições e locais atendidos. (Incidentalmente, a cartelização paulistana também permitiu o envolvimento do PCC com o transporte público.)
O cartel do transporte público é periodicamente celebrado pelas licitações de fachada que simulam algum tipo de “concorrência” entre as empresas. No Recife, por exemplo, uma das capitais mais quentes do país durante todo o ano, depois de o governo municipal prometer que toda a frota de ônibus seria totalmente refrigerada após a Copa do Mundo, a concorrência promovida pelo governo não contou com nenhuma das empresas licenciadas pelo estado — todas se retiraram, ativamente se recusando a melhorar o serviço. No Rio de Janeiro, de forma ainda mais cômica, a prefeitura retirou de circulação cerca de 25% da frota de ônibus para “cumprir a meta” de 100% de ônibus com ar condicionado.
Em suma, houve um trabalho conjunto entre os governos locais e os empresários estabelecidos do transporte público para ganharem o controle com mão de ferro sobre o transporte público em todo o país. O sistema atual surgiu com a destruição do sistema razoavelmente competitivo que vigorava anteriormente, em prol de um sistema de custos crescentes, em que as passagens encarecem religiosamente todo ano e a qualidade do serviço deteriora. Nenhuma dessas consequências é inesperada — são os resultados naturais do monopólio.
Controlando com mão de ferro o transporte público nas capitais, o governo não apenas estabeleceu um sistema invulnerável de extração de rendimentos de monopólio, mas também tem forçado o alastramento urbano (urban sprawl). Com a sub-oferta de transporte inerente ao monopólio, os custos de utilizar os coletivos em áreas densas aumentam (principalmente com sua lotação), forçando um crescimento suburbano e um aumento das linhas para fora do centro — linhas que, evidentemente terão que ser subsdiadas pelo governo, num ciclo vicioso perpétuo.
A erosão do transporte público ainda faz com que o valor relativo dos carros seja mais alto o que contribui tanto para que as cidades sejam tomadas por carros e para piora dos engarrafamentos urbanos, quanto para tornar os preços de carros no Brasil extremamente inelásticos — já que não existem alternativas reais a eles que ofereçam qualquer conforto. Assim, os brasileiros podem aproveitar suas cidades relativamente pouco densas, com trânsito caótico e extremamente engarrafado e os preços de carros mais altos do mundo.
Ah, e ocasionalmente alguns mortos. Como Harlynton e Camila.