Tenho hérnia de disco. De acordo com o laudo da minha ressonância magnética, eu tenho uma “protrusão discal difusa” que atinge o lado “póstero central/lateral direito do disco intervertebral de L5-S1”. As vértebras L5 e S1 ficam na parte lombar. Os discos são o amortecedor natural das suas vértebras. Quando um disco se danifica, ele se desloca para fora das vértebras. Esse deslocamento empurra o famoso nervo ciático. A pressão no nervo ciático faz com quem tem hérnia de disco, no caso eu, sinta uma dor constante que se estende desde a lombar até a parte de trás da panturrilha, passando pela lateral do joelho.
Até maio de 2014, eu nunca tinha sentido qualquer dor de coluna na vida. Na época, eu treinava com pesos mais altos na academia. Aquela coisa pegar muito peso e fazer poucas repetições. Comecei a sentir dor lombar e continuei a malhar. Eventualmente, as dores passaram a ser insuportáveis e eu tive que parar. Algum tempo depois, minha médica me passou um exame de ressonância magnética, mas já alertava que eu tinha uma hérnia de disco. Perguntei se alguém com menos de 60 anos já havia tido hérnia de disco na história humana ou se eu era pioneiro em destruir a própria coluna aos vinte e tantos anos. Para minha surpresa, ela me informou que a maioria dos pacientes de hérnia de disco são jovens. Tendem a fazer mais besteira com o próprio corpo e acabar com a própria coluna. No entanto, ela me disse que ninguém sabe realmente a causa da hérnia de disco. Pode ser genética, exercícios incorretos, acidente.
Por isso, de um ano para cá, deteriorei fisicamente. O que a hérnia de disco implica é que o sujeito está em eterno desconforto. Qualquer posição (em pé, sentado, deitado) mantida por algum tempo é incômoda. Eu não posso fazer exercícios físicos (acredite, eu tentei, apesar de todas as recomendações médicas em contrário). As dores foram aumentando com o tempo. Apesar da fisioterapia, minhas condições não melhoraram muito. Em algumas semanas, porém, eu devo fazer a cirurgia para corrigir o problema — estou pensando em trocar as comemorações do meu aniversário do dia que eu nasci para a data da cirurgia, porque certamente vai ser o momento mais feliz da minha vida.
Um ano sentindo dores constantes na coluna, porém, me ensinou uma coisa ou outra sobre a cidade. Ensinou, por exemplo, que nós não damos a mínima para quem tem mobilidade restrita. Coisas banais, em que antes eu mal prestava atenção, se tornaram muito importantes para mim. Por exemplo, ter calçadas planas que não exijam que eu force minha coluna é um sonho — e algo praticamente inexistente no Brasil. Esse tempo me ensinou que qualquer pessoa que não utilize um carro para ir para qualquer lugar no Brasil é um cidadão de segunda classe que pode estar sujeito a todo tipo de transtorno.
Antes de eu começar a sentir dores, minha atitude em relação a questões urbanas se resumia a: “Rampas para cadeirantes? Claro, vamos fazer isso, hein? Um dia, quem sabe?”. Hoje em dia é: “Preciso de novas calçadas. Para hoje. Agora. Ontem.”
Limites à mobilidade
A primeira coisa que você percebe quando passa a ter limitações à sua mobilidade é que as calçadas brasileiras não são feitas para pedestres. Elas são feitas para que as pessoas saiam de seus carros e entrem nas casas ou estabelecimentos que ficam em frente às calçadas, e vice versa. Qualquer uso que fuja desse padrão é absolutamente inviável — o que leva à prática comum de as pessoas andarem nas ruas, no meio dos carros. Eu não tenho e nunca tive carro. Honestamente, embora parecesse interessante ter um carro, ele só veio a me fazer falta com a hérnia de disco.
Um relatório do site Mobilize Brasil publicado em 2013 deu uma nota média 3,40 para as calçadas de 12 capitais brasileiras, numa escala de 0 a 10, considerados parâmetros como irregularidades, largura, obstáculos, etc. Para o Mobilize, o mínimo aceitável seria uma nota 8.
Eu tenho o privilégio de morar na cidade do Recife, que, de acordo com o relatório, possui calçadas “em geral (…) em péssimo estado”.
Sempre soube que as calçadas do Recife eram vergonhosas, mas isso só passou a fazer a diferença com as dores de coluna. A partir de então, os desníveis frequentes passaram a ser agonizantes. O fato de que as calçadas geralmente são inclinadas para a rua (para que os carros terem mais facilidade em atravessá-las até casas ou prédios, ou mesmo para estacionar sobre elas — afinal, coitados dos carros, precisam que tudo seja mais fácil) também é notado todos os dias em que eu tenho que andar por aí.
O que eu passei a perceber é que talvez existam 3 ou 4 calçadas em todo o Brasil que não estejam absolutamente quebradas, desniveladas, irregulares, com larguras variantes, com obstáculos mil.
As prefeituras alegam que a responsabilidade é dos proprietários dos locais na frente das calçadas e que por isso elas são sofríveis. Já cheguei a me importar com esse jogo jurídico de responsabilidades. Não mais — eu só me importo com o fato de que ninguém realmente se importa com as calçadas.
As calçadas, no Brasil, são o local onde qualquer modificação do espaço público deve ocorrer (jamais penetrando no espaço dos veículos motorizados). As calçadas devem abrigar postes, canteiros, árvores, orelhões, cadeiras e mesas comerciais, sacos de lixo residencial, bancas de revista, viaturas policiais (claro). Se ciclovias são construídas, elas devem necessariamente cortar um naco da calçada.
Árvores, em que pese tornarem o ambiente urbano da cidade quente um pouco menos hostil, são algo que eu tento evitar com todas as forças. Fatalmente, a árvore toma conta de toda a calçada. As raízes quebram o pavimento e me forçam a incorporar o melhor Tarzan aleijado que eu tenho dentro de mim, pulando vagarosamente por cima delas. Frequentemente, as árvores são densas demais e as folhas me forçam a abaixar para conseguir passar. Minha coluna chora.
No Recife e alguns outros lugares no Brasil nós ainda temos a boa fortuna de contar com calçadas que são mais baixas que a rua dos carros. O asfalto já foi recapeado tantas vezes que nós geralmente subimos para a rua em vez de descer. Isso faz com que, nos meses chuvosos de nosso clima tropical, a água escoe — adivinhe — para as calçadas. Molhar os carros não dá, né?
Na verdade, as calçadas são tão ruins que frequentemente eu me pergunto por que não são os pedestres que andam no asfalto. Até onde eu sei, eu não sou equipado com motor. Deve ser mais fácil para uma máquina navegar em terreno acidentado. Nós vivemos bombardeados por propagandas de carros off-road e no entanto o rally é feito nas laterais da pista.
Nós odiamos gente na rua
Anthony Ling, do Caos Planejado, já observou que a verticalização das cidades brasileiras é a pior do mundo. Ele observa que, no Brasil, as regulamentações urbanas em geral obrigam os prédios a deixarem uma área no entorno cada vez maior em relação à altura do edifício. Com áreas enormes entre os edifícios, a calçada morre, porque deslocamentos relativamente pequenos se tornam desnecessariamente gigantescos. Há outros fatores, claro. Um deles é nossa obsessão com vagas de garagem e a proibição de construções no térreo. Assim, a vida social se torna cada vez mais distante e fora das calçadas.
O grupo Direitos Urbanos já observou as vantagens do adensamento e também já criticou o fato de que nós damos cada vez menos incentivos para as pessoas ocuparem as ruas.
Todos percebem que no Brasil (e, relevante para mim, no Recife), a vida de pedestre é dificultada ao máximo. Tudo é longe. Mesmo se for perto, a calçada é uma pista de obstáculos que me faz lembrar que eu não ando com morfina no bolso para aliviar as dores.
Porém, mesmo que eu não queira, mesmo que minhas costas peçam por-favor e pelo-amor-de-Deus para eu ficar em casa, tenho que sair na rua. E, removidos todos os outros obstáculos, ainda assim é um castigo kármico.
Porque as ruas não foram feitas para quem simplesmente está nas ruas. Elas preveem pessoas em constante movimento. Indo ou voltando para casa. Indo ou voltando para o trabalho. Indo ou voltando de algum comércio. Jamais paradas. Nunca sentadas.
Como agora eu sinto a necessidade de sentar ocasionalmente para aliviar o estresse sobre a lombar, acabei descobrindo que as cidades não têm lugares para sentar. Grande parte dos pontos de ônibus são só placas. Os que têm assentos tendem a ter assentos individuais ou inclinados para frente, para que os sem teto não se atrevam a dormir nesses lugares — o que também, claro, torna as superfícies desconfortáveis para quem precisa descansar, como eu.
De fato, a maioria dos locais que poderiam servir de assento para qualquer pessoa são atualmente bloqueados de alguma forma. Canteiros gradeados ou com as beiradas pontiagudas, bancos inclinados ou com descansos para braços para evitar que você se deite, espetos para evitar que as pessoas se sentem ou encostem em algum lugar. Tudo isso, em geral, é feito para evitar que pessoas sem teto fiquem poluindo nossas ruas. Afinal, ninguém deveria ficar na rua — se você quer sentar ou deitar, vá para casa. Se você não tem casa, já pensou em ter?
Mas eu preciso sentar. Às vezes deitar. Se antes esses obstáculos eram pequenos incômodos, hoje em dia eles se tornaram a primeira falta que eu percebo em qualquer ambiente. As pessoas não apenas mostram que odeiam mendigos. Elas odeiam também quem tem problemas de colunas como eu. Odeiam também mulheres grávidas nas ruas. Ou idosos. São gente que jamais deveria sair de casa, se é que têm casa. É o que chamam de arquitetura defensiva — algo que não passava de paisagismo quando minha coluna estava 100% e agora salta aos olhos como um caminho de armadilhas em qualquer lugar onde eu esteja.
Mesmo os shoppings — refúgios do recifense, locais refrigerados e planos, onde é possível andar sem perturbações — evitam espalhar bancos fora de suas praças de alimentação. A não ser que você esteja consumindo alguma coisa, você provavelmente não deveria estar parado em qualquer lugar.
Sobrevivendo no ônibus
Me acostumei com o fato de que ônibus são processos dolorosos. Não é como se ninguém estivesse descendo o elevador para cadeirantes para o cara que aparentemente não tem nenhum problema físico. Ônibus são altos. Então, para entrar neles, eu me agarro nas alças das portas e me jogo para dentro do veículo num movimento rápido e sofrido.
Ônibus também são desconfortáveis. As cadeiras são duras. O amortecimento é quase zero. Toda vez que o ônibus sacode com o relevo acidentado da rua, meu disco intervertebral de L5-S1 grita “eu existo e controlo sua vida!”.
Além disso, ônibus são lotados. Pegar ônibus no Brasil significa se submeter ao cartel das empresas de ônibus. O cartel foi estabelecido pouco a pouco em todo o país pelas prefeituras. Em São Paulo, é provável até que o PCC controle parte das frotas de ônibus. Os ônibus são um modal de transporte cuja última prioridade é o conforto do passageiro. E quanto menos na rua, melhor.
Se você é sensível a isso simplesmente por ter que ir trabalhar de ônibus diariamente, imagine sendo o cara que precisa mudar de posição ocasionalmente para não suar de dor.
E imagine ter que fazer o salto para o chão na saída do ônibus quando sua coluna não aguenta a pressão de uma caminhada.
Brasileiro é apaixonado por carro
É notícia frequente que o Brasil tem o carro mais caro do mundo, mesmo em relação a países em desenvolvimento, como o México. Muitas razões são dadas para esse fato: impostos altos, produção baixa que evita que os carros tenham economias de escala. De fato, o custo do capital no Brasil é um dos mais altos no mundo. Além disso, o Brasil cartelizou suas grandes montadora e sobretaxa carros importados. Isso empurra o preço ainda mais para cima.
Alguns afirmam que a culpa dos preços altos dos carros é o lucro exorbitante das montadoras de carros, o chamado “lucro Brasil”. Claro, é comum que cartéis lucrem bastante em mercados protegidos.
Porém, depois de um ano de desconforto, caminhadas doloridas e sessões de fisioterapia, acredito que a real razão é que a demanda por carros é extremamente inelástica. Por que alguém quereria se submeter à vida sem carro no Brasil? Andar é terrível. O transporte público é lastimável. O carro é a única opção para qualquer ser humano racional.
É difícil notar isso e eu só me tornei capaz de ver como o jogo está viciado contra o pedestre, contra quem não tem carro, quando andar passou a ser difícil.
Se antes eu conseguia superar e ignorar quaisquer problemas urbanos porque, bem, era ágil, corria uma hora e levantava peso na academia, o meu disco intervertebral de L5-S1 me obrigou a olhar para a cidade.
Foi quando eu passei a ver que era indesejado por ela. Eu não devia estar na rua, a cidade não foi feita para mim — pelo menos não no meu estado atual. Eu não me encaixo no perfil de cidadão que a cidade quer. Não mais.
Pelo meu egoísmo natural e pela minha boa saúde, eu não conseguia perceber que a cidade me empurrava para fora da rua. E talvez tenha sido a primeira vez que eu notei o quão urgente é a pauta da acessibilidade.
Você pode achar que isso não te diz respeito. Afinal, sua coluna não dói.
Só que ela não precisa doer. A cidade nos empurra para dentro de casa e para dentro do carro. Você só não percebeu ainda.