No dia 18 de janeiro, o corpo do promotor argentino Alberto Nisman foi encontrado no banheiro de seu apartamento em Buenos Aires, ensanguentado, tendo um sofrido um tiro na cabeça. No dia seguinte, ele apresentaria suas acusações contra a presidente Cristina Fernández de Kirchner por possivelmente ter blindado oficiais iranianos de perseguição criminal pelo bombardeio do centro comunitário judaico AMIA, que matou 85 pessoas.
O episódio tem se tornado rapidamente um exemplo claro de como a busca pelo poder político monopolístico conferido pelo estado leva os oponentes políticos de todas as estirpes a mentirem desavergonhadamente, a embarcarem em uma guerra de informações maquiavélica em que até mesmo o senso mais básico de busca pela verdade e pela justiça se torna a principal — porém ignorada — vítima.
A mentira mais fundamental é a ideia, defendida principalmente pela oposição do governo de Fernández, que Nisman é algum tipo de mártir que sacrificou sua vida perseguindo a verdade e a justiça. Embora as evidências forenses ainda não permitam chegar à conclusão de que Nisman tenha sido assassinado ou tenha cometido suicídio, a maior parte da oposição acredita que o governo o matou para evitar que ele apresentasse ao Congresso as provas que supostamente davam suporte a suas acusações. Essa teoria tem sido o refrão repetido ad nauseam pela maior parte da mídia mainstream em todo o mundo.
Contudo, o argumento chave da acusação de Nisman, repetido 96 vezes em seu depoimento, é que Kirchner e seu Ministro de Relações Exteriores Héctor Timerman tentou revogar os mandados de prisão da Interpol contra ex-oficiais iranianos acusados pelo ataque à AMIA. E Ronald K. Noble, secretário-geral da Interpol por 15 anos, negou em janeiro que isso tenha ocorrido — no mesmo dia em que Nisman morreu.
A acusação se baseia inteiramente em conversas grampeadas fornecidas pelos serviços de inteligência argentinos, em sua maior parte entre o líder sindical e falastrão ativista kirchnerista Luis D’Elia e o líder da comunidade iraniano-argentina Jorge “Yussuf” Khalil. Até o momento, nenhuma conversa grampeada de Timerman ou Fernández de Kirchner com oficiais iranianos foi revelada.
É extremamente implausível que o governo tenha matado um rival político de forma tão óbvia por conta de uma acusação apoiada em tão poucas evidências. O governo sabia perfeitamente bem que os legisladores governistas teriam triturado o depoimento de Nisman assim que ele chegasse ao Congresso.
Porém, mais fundamentalmente, é público e notório que prestígio e poder, e não verdade e justiça, eram as prioridades de Nisman durante sua carreira.
Simplesmente não havia qualquer faísca de evidência testemunhal ou forense que incriminasse oficiais iranianos durante o bombardeio da AMIA. Lançada por fontes israelenses poucos dias após o ataque, a teoria por trás das acusações de envolvimento iraniano afirma que um homem-bomba do Hezbollah de nome Ibrahim Hussein Berro dirigiu uma van Renault Traffic branca cheia de explosivos para a frente do prédio da AMIA. Mas de 200 testemunhas no local, apenas uma afirmou ter avistado a van e mais tarde foi contrariada por sua irmã e outras testemunhas que afirmavam, ao contrário, ter visto um táxi amarelo e preto segundos antes da explosão. A análise forense executada pela própria equipe legal da AMIA determinava que fragmentos de uma van supostamente encontrada no local não podiam ter advindo do carro que a polícia havia identificado como o do homem-bomba. Além disso, um time de especialistas do Escritório de Armas, Tabaco e Armas de Fogo dos EUA, que auxiliou a investigação a pedido do então presidente Carlos Menem, determinou que a explosão teve origem no interior do prédio.
O único suspeito preso durante a investigação inicial, então liderada pelo juiz Juan José Galeano, foi um misterioso vendedor de carros usados de sobrenome xiita, Carlos Telleldín, acusado de vender a van Renault Traffic branca para alguém que, de alguma forma estava conectado ao responsável pelo atentado. A real intenção do governo Menem, contudo, ao prendê-lo mais tarde se revelou quando uma gravação em vídeo da SIDE, a agência de inteligência da Argentina, mostrou Galeano oferecendo a Telleldín US$ 400.000 para responsabilizar pelo atentado policiais leais a Eduardo Duhalde, o principal rival político de Menem na época.
Em 2004, um tribunal de Buenos Aires inocentou Telleldín e os policiais que ele subornou e processou Galeano — que, em agosto de 2005, foi removido de sua função. Mas desde que Nisman havia se tornado o promotor geral em 2004, ele continuava a sustentar a farsa de que Berro era o homem-bomba do caso. Outro elemento ainda menos crível de sua acusação de envolvimento de altos oficiais iranianos era uma suposta reunião em 14 de agosto de 1993 entre líderes iranianos — que contou com a presença inclusive do líder supremo Ali Khamenei e o então presidente Hashemi Rafsanjani — em que Nisman afirmava que a decisão oficial foi tomada para seguir adiante com o ataque como planejado.
As únicas fontes citadas por Nisman eram membros do grupo de oposição cultista e assassino Mujahedin E Khalq (MEK), que foram removidos da lista do Departamento de Estado dos EUA da lista de grupos terroristas em 2012 (graças a sua agressiva campanha de pagamento de gordas somas em dinheiro para conferências para ex-oficiais americanos) e cujas afirmações a respeito do programa nuclear iraniano têm se mostrado inteiramente falsas quando investigadas pela Agência Internacional de Energia Atômica.
Nisman também usava o testemunho do exilado iraniano Aboghasem Mesbahi na acusação das lideranças do governo do Irã. Em uma entrevista de novembro de 2006 com o repórter investigativo Gareth Porter, o ex-diretor do FBI James Bernazzani afirmou que analistas de inteligência consideravam Mesbahi como alguém que estava desesperado por dinheiro e pronto para “testemunhar por qualquer país em qualquer caso que envolvesse o Irã”. Mesbahi também alegou várias vezes possuir informações internas de que o Irã estava por trás dos ataques de 11 de setembro, mas seu testemunho foi descartado pela Comissão do 11/09.
As várias conexões políticas da investigação de Nisman ficaram salientes com os vazamentos do Wikileaks em 2011, que revelaram as atitudes subservientes do promotor em relação à embaixada dos EUA em Buenos Aires: ele sistematicamente dava à embaixada avisos sobre os próximos passos jurídicos tomados tanto pelo escritório da promotoria quanto pelo tribunal que julgava o caso da AMIA, fornecia rascunhos de resoluções para serem corrigidos até que a embaixada os aprovasse e repetidamente se desculpava quando não informava a embaixada a respeito de determinada medida com antecedência.
Apesar disso, os esforços de Nisman deram frutos em 2006. O juiz Canicoba Corral, que está a cargo do caso até hoje, reabriu a investigação contra o Irã e finalmente requisitou que a Interpol emitisse mandados de prisão contra os oficiais iranianos. Corral candidamente admitiu que agiu sob pressão da administração Bush.
Já as acusações de Nisman contra Fernández de Kirchner e Timerman, sendo baseadas puramente em especulação e grampos de inteligência, eram tão fracas que além da negativa de Ronald Noble da Interpol, até mesmo Canicoba Corral teve que declarar que as evidências possuíam “valor quase nulo”. O juiz Ariel Lijo, sob cuja jurisdição o caso caiu, se recusou a acabar com o recesso de janeiro para ouvir o caso devido à falta de provas da acusação. Mesmo a AMIA e a DAIA (Delegação de Associações Israelitas Argentinas) foram cautelosas em apoiar as acusações quando afirmaram querer analisá-la antes de mais nada. No dia 26 de fevereiro, o juiz federal Daniel Refecas descartou as acusações de Nisman por não possuírem “mínimas condições” necessárias para iniciar uma investigação formal.
Dado esse contexto, parece muito mais provável que Nisman, com cada vez menos apoio a suas acusações, tenha ficado cada vez mais isolado e, horas antes da defesa de suas extravagantes acusações em uma sessão hostil do Congresso, decidiu tirar a própria vida ao invés de se deparar com a perspectiva de perder totalmente sua credibilidade profissional e reputação.
No entanto, o governo parece tão ansioso quanto a oposição a bancar a versão de que Nisman tenha sido assassinado. A própria presidente Fernández de Kirchner sugeriu que esse fosse o caso no segundo de dois incoerentes posts no Facebook escritos horas após o corpo de Nisman ser encontrado — no primeiro, Kirchner havia ecoado a hipótese do suicídio.
Para o governo argentino, o suspeito principal é Antonio “Jaime” Stiuso, um dos mais temidos homens da Argentina nas últimas décadas e ex-diretor de operações da SIDE. Stiuso começou sua carreira nos anos 1970 e, nos anos 1980, durante os anos da “guerra suja” da ditadura militar que governava o país na época, aprendeu suas táticas de grampeio de conversas que permitiram que ele se tornasse o líder de contrainteligência da agência.
Stiuso se tornou uma lenda, famoso por ter montado arquivos cheios de informações comprometedoras sobre políticos proeminentes e socialites famosas — uma atividade que fez com que fosse comparado a vários outros operadores famosos, como o fundador do FBI Edgar J. Hoover e Vladimiro Montesions, o diretor da agência de segurança do Peru durante a presidência de Alberto Fujimori.
Ele tomou as rédeas da investigação dos ataques da AMIA logo depois do bombardeio 1994, a perdeu temporariamente, mas a ganhou novamente em 2001. Quando Nisman foi apontado como líder da investigação da AMIA em 2004, ele começou a trabalhar imediatamente ao lado de Stiuso — aprendendo suas técnicas diretamente do espião-mestre. Ao longo do tempo, seu relacionamento se tornou mais próximo. Nisman elogiou abertamente o “brilhantismo” de Stiuso e expressou seu “carinho especial” pelo espião.
Stiuso sempre foi a ponte entre a SIDE e os serviços de inteligência internacionais mais poderosos, principalmente a CIA dos EUA e o Mossad de Israel. De acordo com Gerardo Young — autor do livro Código Stiuso, editor-chefe do time investigativo do jornal Clarín até 2012 e provavelmente o jornalista investigativo mais informado sobre a história da SIDE — Stiuso vigiava sistematicamente os diplomatas iranianos e outras figuras importantes da comunidade islâmica de Buenos Aires bem antes dos ataques à AMIA e compartilhava todos os dados coletados com o Mossad.
Stiuso se desentendeu com o governo quando Fernández de Kirchner propôs um memorando de entendimento com o Irã em 2013 com o objetivo de estabelecer uma comissão da verdade sobre o caso da AMIA composto de juristas internacionais, permitindo acesso dos promotores argentinos a fontes iranianas para suas investigações. Isso foi o que incitou as acusações de Nisman, que alegavam que seu objetivo principal era suspender os alertas vermelhos da Interpol para oficiais iranianos para assegurar acesso ao petróleo do Irã. A tensão entre Stiuso e o governo chegou a seu ápice em dezembro de 2014 quando foi requisitado que Stiuso deixasse sua posição de chefe de operações da SIDE.
Assim, o governo afirma que Stiuso “manipulou” Nisman a indiciar Fernández de Kirchner e Timerman e então o matou ou induziu a cometer suicídio para levantar suspeitas de que a administração Kirchner era responsável pelo assassinato.
A teoria do governo sobre a morte de Nisman é mais plausível que a da oposição. Mas, é claro, isso não significa que o histórico do governo seja mais limpo em relação à investigação da AMIA.
Primeiramente, apesar de toda a sua retórica anti-imperialista, desde que Néstor Kirchner (o falecido marido de Cristina Fernández de Kirchner) chegou ao poder em 2003, os Kirchners estão muito felizes em seguir as diretrizes de Washington e Tel Aviv ao culpar os iranianos pelo ataque à AMIA. O governo pública e abertamente reconhece que nunca questionou as atividades de Nisman na investigação da AMIA durante toda a sua carreira. Na verdade, foi o próprio Néstor Kirchner quem destacou Nisman para a investigação em 2004. Também foi Néstor Kirchner quem apresentou Nisman a Stiuso e solidificou seu relacionamento.
Agora que é politicamente conveniente, o governo e seus apoiadores atacam Stiuso e o denunciam como o inimigo público número um, mas o fato é que os Kirchners cultivaram um relacionamento mutuamente benéfico com ele ao longo dos anos, da mesma forma que todos os governos anteriores. Os Kirchners não foram exceções ao uso e abuso dos serviços de inteligência para espionar oponentes políticos, jornalistas, ativistas e influenciar o judiciário.
Um dos exemplos mais claros da atuação de Néstor Kirchner ocorreu em meados de 2004, no primeiro grande escândalo da era kirchnerista. Durante uma reunião com Kirchner em julho de 2004, Gustavo Béliz, então Ministro da Justiça, advertia o ex-presidente sobre as atividades ilegais patrocinadas pela SIDE e alegava que Stiuso era o responsável por elas. Kirchner terminou a reunião pedindo para que Béliz deixasse a questão com ele, que ele “tomaria conta” do caso, com a então senadora Cristina Fernández como testemunha. Horas depois, o ministro foi demitido com um telefonema.
Béliz escalou as tensões revelando uma foto manchada de Stiuso na televisão, acusando-o de direcionar uma “espécie de Gestapo”. Dias depois, um advogado desconhecido abriu um processo contra ele por violação da Lei de Inteligência Nacional, que afirma que a identidade do pessoal da SIDE é um segredo de estado. Béliz se exilou nos EUA e no Uruguai, sem poder retornar a posições oficiais nos 10 anos seguintes.
Além da assinatura do memorando com o Irã, Cristina Fernández de Kirchner se cansou de Stiuso e seus aliados da SIDE em 2013 simplesmente porque sentia que estava perdendo sua lealdade política. Ela se sentiu traída quando Sergio Massa, prefeito da cidade de Tigre e um de seus maiores rivais políticos, decidiu concorrer à presidência nas eleições presidenciais seguintes apesar das garantias da SIDE de que ele não o faria. Houve também o escandaloso assassinato em 2013 de Pedro Tomás “El Launchón” Viale, principal protegido de Stiuso. Uma operação extremamente violenta liderada por um grupo de elite da polícia da província de Buenos Aires o baleou em sua própria casa. Ele era investigado por tráfico de drogas e fraude imobiliária. De acordo com Young, a presidente sentia que os “garotos só causavam dores de cabeça”, como disse ela a Héctor Izcazuriaga e Francisco Larcher, os números um e dois da SIDE na época.
Embora o governo tenha alegado que a principal motivação para a assinatura do memorando tenha sido o desbloqueio das investigações da AMIA, tratava-se obviamente de um movimento geopolítico oportunista e calculado para alinhar a Argentina à posição mais ampla da região em relação ao Irã liderada pelo Brasil — o maior apoiador do Irã na Agência Internacional de Energia Atômica e o maior parceiro comercial da Argentina. A recente abertura da administração Obama a negociações com o Irã sobre seu programa nuclear também podem ter diminuído o valor político da culpabilização do Irã para as relações diplomáticas de Kirchner com Washington.
Talvez, então, todo esse episódio tenha uma consequência inesperada positiva: forçar a maioria dos argentinos a perceberem a verdade nua de que o poder está nas mãos de pessoas como Stiuso, que operam a partir do que Young apropriadamente chamou de “esgotos da democracia”. Pela primeira vez na história do país, um presidente, tendo perdido controle dos que controlam esses esgotos, entrou em confronto direto com eles, permitindo que entrasse um feixe de luz nas tubulações.
Alguns dias atrás, o governo lançou um programa de “reforma” da SIDE. Seu nome foi mudado para SI (Secretariado de Inteligência) e outras mudanças cosméticas começaram a acontecer. É possível que os argentinos vejam a ironia aqui e percebam que entre todas as mentiras que são contadas atualmente de todos os lados do espectro político, talvez a maior de todas, mais fundamental do que culpar o Irã pelo ataque à AMIA, é a de que os “esgotos da democracia” podem ser limpos.
Porque enquanto a democracia se desenvolver num contexto estatal, os esgotos serão parte integral dela. O monopólio sobre o uso da força é o que cria os incentivos para que pessoas como Stiuso acumulem poder nas sombras.
Para limpar esses esgotos, precisamos de mais do que uma reforma; precisamos da abolição total do monopólio que os cria.