Planos para uma nova sociedade parecem ser bastante populares entre anarquistas de todos os matizes. Na direita, temos o modelo de Murray Rothbard, que enxergava uma sociedade inteira baseada em seu “código legal libertário” deduzido de princípios como a autopropriedade e a não-agressão. Dentro do movimento anarquista histórico de esquerda, temos modelos uniformes como o sindicalismo ou o comunismo kropotkiniano. A mesma tendência pode ser observada entre modelos socialistas libertários semianarquistas como o deleonismo e o Movimento Socialista Mundial; este último pretende criar uma sociedade comunista persuadindo todos os países do mundo a votarem em seu modelo preciso de organização social através do processo político em um período muito curto de tempo. Como se tudo isso não fosse o bastante, temos a Parecon.
A posição “anarquista sem adjetivos” foi uma reação a essa construção doutrinária de modelos e aos conflitos resultantes entre os proponentes de várias receitas totalizantes para a sociedade — notoriamente, tratou-se de uma reação ao conflito no final do século 19 entre individualistas, representados por Benjamin Tucker, e comunistas, encabeçados por Johann Most. O termo, porém, havia sido usado pela primeira vez por dois anarquistas espanhóis, Ricard Mella e Fernando Terrida del Marmol (que Voltairine de Cleyre conheceu em Londres em 1897). Errico Malatesta e Max Nettlau adotaram a posição e de Cleyre e Dyer Lum se tornaram seus mais importantes defensores nos Estados Unidos. A ideia básica era que os anarquistas deveriam parar de criar rixas sobre modelos específicos da sociedade anarquista futura e deixar para as pessoas desenvolverem esses sistemas como acharem melhor. Ideias econômicas como o mutualismo de Proudhon, a livre iniciativa de Tucker e o comunismo de Kropotkin eram complementares e, numa sociedade pós-estatal, cem flores desabrochariam de um local, de um agrupamento social, para outro.
David Graeber já defendeu algo parecido. Ele expressa ceticismo de que algo como o anarcocapitalismo pudesse existir por muito tempo em uma escala significativa, num ambiente em que um grande número de pessoas estaria disposto a se submeter ao trabalho assalariado a serviço de uma minoria, dado que o acesso aos meios de produção seja relativamente fa´cil e não haja policiais para excluir as pessoas das terras vagas. Afinal, o relacionamento de “mestre” de Robinson Crusoé sobre Sexta-Feira dependia do fato de que ele já tinha “se apropriado” de toda a ilha e de que possuía uma arma. Mas contanto que os arranjos econômicos sejam negociados entre iguais, e ninguém esteja em posição de submeter os outros a sua vontade através das armas, Graeber está contente em esperar para ver.
Então, o que poderíamos dizer sobre uma sociedade sem estado em linhas gerais? Primeiro, ela emergirá a partir da paulatina exaustão, do abandono e do recuo de grandes instituições hierárquicas como o estado, as corporações, as universidades burocráticas, etc. A sociedade se baseará geralmente em certo tipo de horizontalismo (prefigurado por movimentos como a Primavera Árabe, o M15 e o Occupy) em conjunção com instituições locais autogeridas. Segundo, seus elementos básicos serão as contrainstituições a surgir em todos os lugares para assumir as responsabilidades deixadas pelo estado e pelas corporações. Jardins comunitários, permacultura, ocupações, hackerspaces, sistemas monetários alternativos, produção comunitária nos commons, a economia do compartilhamento e todas as outras formas de organização social baseadas na cooperação voluntária e em novas tecnologias ultraeficientes para a produção em pequena escala. E terceiro, se a sociedade passar a refletir qualquer ideologia comum, ela refletirá valores como autonomia pessoal, liberdade, cooperação e solidariedade social. Mas os pontos específicos serão resolvidos de milhares de maneiras diferentes, diversas demais para serem englobadas por modelos verbais como “comunismo” ou “mercados” (entendido como o nexo monetário).
Eu espero que exista uma grande variação entre instituições de pequena escala, tanto dentro quanto entre comunidades: coletivos de trabalhadores, empresas, cooperativas, redes p2p, etc. Unidades sociais multifamiliares como ocupações, projetos de coabitação e complexos de famílias estendidas podem implementar um comunismo autárquico internamente e desfrutar de máquinas para produção em pequena escala para atender à maioria de suas necessidades através da produção direta, obtendo o resto através de trocas no mercado. Regras de posse e apropriação de terras e empresas variarão de uma comunidade para a outra.
Mesmo que partamos de algumas premissas básicas — como um entendimento mais amplo do princípio de autopropriedade e não-agressão (não que a maioria do movimento anarquista venha de uma tradição filosófica que dê muito peso a essas palavras) –, isso significa muito pouco em termos de regras práticas a serem deduzidas. Não há nenhuma maneira, a partir de axiomas básicos como a autopropriedade e a não-agressão, para deduzir quaisquer regras particulares que sejam óbvias e necessárias para questões como (por exemplo) meu direito de intervir para impedir que um animal seja torturado por seu “dono” ou quais regras específicas devem valer no caso de ocupantes e no abandono de propriedades.
Até a definição do que caracteriza agressão contra um indivíduo é, em grande medida, definida culturalmente. O ambiente afeta o corpo físico de milhões de maneiras diferentes e a fronteira entre o que é considerado agressivo e o que não é (como fótons e ondas sonoras que afetam fisicamente os órgãos sensoriais e, subsequentemente, o sistema nervoso e o estado mental interno) é um tanto arbitrária. O mesmo varia no caso das definições cambiantes do que caracteriza uma pessoa e o que é o seu ambiente, e o quanto desse ambiente pode ser considerado parte da pessoa, uma extensão do eu ou uma envelope do “espaço pessoal”. Lembre-se de que as definições dentro do direito comum do que é agressão presumem esse envelope espacial e englobam ações que nem mesmo incluem tocar o corpo de outra pessoa.
Qualquer sociedade pós-estado incluirá indivíduos e comunidades que assumam várias ideias conflitantes sobre o que são “liberdade”, “autonomia” e “direitos”. Os “códigos legais” que venham a surgir não serão deduções lógicas óbvias de axiomas, mas interações constantes entre indivíduos e grupos que afirmam seus entendimentos diferentes do que direitos e liberdade significam. E esses entendimentos surgirão após a ocorrência de conflitos, através da negociação prática dentro dos órgãos de mediação e adjudicação dentro das comunidades.
Em outras palavras, precisamos passar menos tempo como Thomas More, fazendo planos sobre todos os detalhes da utopia, ao ponto de prescrever qual será sua comida e arquitetura, e passar mais tempo conversando com nossos vizinhos e criando maneiras de cooperar e nos relacionar sem que o estado nos diga o que fazer.