Preferia que você parasse de ser tão bom para mim, Capitão Hoppe - Kevin A. Carson

Talvez o leitor esteja familiarizado com o artigo de Murray Rothbard “O igualitarismo é uma revolta contra a natureza“. Hans-Hermann Hoppe, eminência parda no LewRockwell.com, vai um passo além e coloca a crença na desigualdade humana como uma característica fundante do libertarianismo de direita (“A Realistic Libertarianism“, 30 de setembro, também traduzido para o português). Não é apenas uma montanha em que ele está disposto a morrer, mas onde ele está também disposto a fazer sua reprise solo do Assalto de Pickett.
A esquerda […] está convencida da igualdade fundamental do homem, de que todos os homens são “criados iguais”. Ela não nega o patentemente óbvio, contudo: há diferenças ambientais e fisiológicas, i.e., algumas pessoas vivem em montanhas e outras no litoral, alguns são machos e outros fêmeas, etc. Mas a esquerda nega a existência de diferenças mentais ou, quando essas diferenças são aparentes demais para serem negadas, tenta justificá-las como “acidentais”.
Na verdade, a esquerda (ou pelo menos a maioria dos membros da esquerda) não nega que existam diferenças individuais de habilidade e intelecto. Mas deixemos isso de lado. Hoppe não está satisfeito em parar por aí:
[O libertário de direita] realisticamente percebe que o libertarianismo, enquanto sistema intelectual, foi desenvolvido pela primeira vez e elaborado no mundo ocidental por homens brancos, em sociedades dominadas por homens brancos. Que é em sociedades dominadas por homens brancos heterossexuais que a adesão a princípios libertários é a maior e que desvios deles são menos severos (como indicado por políticas comparativamente menos maléficas e extorsivas por parte do estado). Que são homens brancos heterossexuais que demonstram a maior criatividade, indústria e habilidade econômica. Que são sociedades dominadas por homens brancos heterossexuais e, em particular, as mais bem sucedidas entre elas que produziram e acumularam a maior quantidade de bens de capital e alcançaram os padrões de vida médios mais altos.
Alguns podem notar uma certa contradição interna entre o uso reiterado da palavra “dominadas” para descrever o papel de certos segmentos privilegiados da sociedade e que a ideia de que o pensamento “libertário” foi formulado em sociedades baseadas na dominação.

Evidentemente Hoppe não vê essa contradição, já que ele mal consegue conter seu entusiasmo com a perspectiva de que sua forte crença na autopropriedade, na não-agressão e em regras de aquisição inicial terão o efeito — apenas por coincidência, é claro — de perpetuar a dominação desses homens brancos heterossexuais. Assim, os maiores beneficiários das ideias da liberdade que homens brancos inventaram serão esses mesmos homens brancos.

Hoppe gosta de argumentar que toda propriedade naturalmente escassa deveria ser atribuída a “algum indivíduo específico”. A partir daí, em uma típica reafirmação de seu argumento padrão, ele presume a apropriação universal de todas as terras dentro de um país. Quando todas as regras dentro de um país, inclusive ruas, sob propriedade individual, segue-se que ninguém possa entrar no país ou transitar em alguma rua sem a permissão de proprietários privados ou donos de terras. Numa só tacada, isso resolve o “problema” da imigração, uma vez que — embora fronteiras nacionais não existam — ninguém além de um empregado convidado ou bracero poderia entrar nos Estados Unidos em que todas as terras fossem apropriadas sem invadir a propriedade de alguém. Isso também resolve o “problema” dos direitos dos gays, já que num país composto esmagadoramente por cristãos tementes a Deus como Hoppe, ninguém quererá “essa gente” em suas propriedades. Se você acha o libertarianismo de Thomas Paine e William Godwin difícil de digerir, através do milagre da apropriação universal você pode (isto é, se for um homem branco dono de terras) formar sua própria sociedade “livre” neofeudal à imagem e semelhança de O conto da aia.

Talvez todos que não sejam heterossexuais, brancos ou homens se beneficiem se esses homens brancos héteros inteligentes cuidem da sociedade, para seu próprio bem.

As ideias de Hoppe sobre a apropriação universal, porém, não parecem muito fáceis de aceitar, pelo menos para alguém que não tenha um cérebro monumental como o de Herr Doktor Professor Hoppe. Mesmo entre os libertários de direita, o padrão normal de legitimidade da apropriação privada da terra é o de John Locke e Murray Rothbard: ocupação e uso. Um pedaço de terra que não seja trabalhado e alterado, por definição, não tem dono. E a maior parte das terras nos Estados Unidos, como o libertário Albert Jay Nock observou, está vaga e não foi trabalhada. A única maneira — agora e no futuro próximo — de apropriar universalmente essa terra é através do que Franz Oppenheimer chamou de “apropriação plítica” e Nock chamou de “propriedade legislada”. É o mesmo que Rothbard — alguém que nós presumiríamos ser influente junto a Hoppe — chamava de “engrossment” (“concentração”): o cercamento das terras que não foram ocupadas ou trabalhadas para coletar tributos de seus donos legítimos, os primeiros a ocupá-la e a colocá-la em uso.

Ignorando as visões de Hoppe sobre a apropriação universal da terra e sobre a exclusão dos “indesejáveis”, ele também negligencia o fato de que os homens brancos benevolentes e naturalmente libertários do Ocidente “civilizado” passaram alguns séculos roubando, pilhando e escravizando as partes não-europeias do mundo que colonizaram antes de decidirem compartilhar a dádiva da liberdade com elas. Nesse processo, também destruíram grande parte das civilizações preexistentes e evisceraram a sociedade civil — e a riqueza — desses lugares.

Jawaharlal Nehru argumentou com alguma plausibilidade que Bengala se tornou a parte mais pobre da Índia porque foi o primeiro foco de infecção da doença do colonialismo britânico, através de Warren Hastings. Os britânicos sistematicamente acabaram com a indústria têxtil indiana, que competia com Manchester, e também roubaram as propriedades das terras da maior parte da população (começando com os assentamentos permanentes de Hastings), transformando as elites locais em canais de extração de riqueza em benefício do império.

Quando esses homens ocidentais de bom coração finalmente decidiram compartilhar essas interessantes ideias de liberdade com as pessoas de cor que dominaram, elas mantiveram todas as coisas que já tinham roubado para si — como recompensa, talvez, por seu altruísmo em inventar a liberdade pelo bem de todas essas pessoas negras e mulatas que, de outra maneira, jamais teriam ouvido a respeito.

Nós até nos perguntamos se não havia outra maneira melhor e menos custosa pela qual essas infelizes pessoas de cor poderiam ter adquirido as ideias da liberdade.

Falando nisso, quase me esqueço de mencionar o trabalho de David Graeber a respeito de sistemas decisórios consensuais como fenômeno quase universal durante a história humana, em contraste com a ideia de Hoppe de que “direitos humanos” e “democracia” sejam uma criação única do Cânone do Homem Branco que requeriam esforços e genialidade do nível do Projeto Manhattan para seu desenvolvimento. Os conservadores ocidentais (como Hoppe) normalmente veem a liberdade humana e o autogoverno como ideias avançadas que somente homens brancos em lugares como a Atenas de Péricles e a Filadélfia em 1787 poderiam desenvolver. A respeito dessa afirmação, Graeber comenta:
Claro, é um viés peculiar da historiografia ocidental de que esse tipo de democracia é o único que realmente conta como “democracia. É comum ouvir que a democracia se originou na antiga Atenas — como a ciência ou a filosofia, foi uma invenção grega. Nunca fica inteiramente claro o que isso significa. Devemos acreditar que, antes dos atenienses, ninguém jamais em qualquer outro lugar havia pensado em reunir os membros de sua comunidade para tomar decisões conjuntas de forma que todos tivessem igual voz. Isso seria ridículo. Claramente existiram muitas sociedades igualitárias na história — muitas bem mais igualitárias que Atenas, muitas que devem ter existido antes de 500 a.C. — e, obviamente, elas devem ter tido algum procedimento para chegar a decisões em questões de importância coletiva. No entanto, sempre se presume que esses procedimentos, sejam quais fossem, não poderiam ter sido de fato “democráticos”.

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O motivo por que acadêmicos tanto relutam em ver um conselho de uma vila sulawesi ou tallensi como “democrático” — além do simples racismo, a relutância em admitir que qualquer um que os ocidentais tenham massacrado com tanta impunidade tenham estado no nível de Péricles — é que eles não votam. Esse, evidentemente, é um fato interessante. Por que não? Se aceitarmos que levantar as mãos ou se posicionar em um lado ou outro da praça para concordar ou discordar de uma proposição não são realmente ideias tão sofisticadas a ponto de nunca terem ocorrido a ninguém até que um gênio antigo as “inventasse”, então por que são tão raramente empregadas? Aparentemente, temos aqui um exemplo de rejeição explícita. No mundo inteiro, desde a Austrália até a Sibéria, comunidades igualitárias têm preferido alguma variação do processo consensual. Por quê? A explicação que eu proponho é a seguinte: é muito mais fácil em uma comunidade pequena saber o que a maioria dos membros dessa comunidade deseja fazer em vez de tentar convencer aqueles que discordam. Processos decisórios consensuais são típicos de sociedades onde não haveria maneiras de compelir uma minoria a concordar com uma decisão majoritária — porque não há estado com um monopólio sobre a força coercitiva ou porque o estado não tem nada a ver com as decisões locais. Se não há maneiras de coagir aqueles que discordam de uma decisão majoritária a se submeterem a ela, então a última coisa que se deve fazer é uma votação: um concurso público em que uma das partes perderá. O voto seria a maneira mais provável de garantir humilhação, ressentimento, ódio e, no final, a destruição das comunidades. O que é visto como um processo elaborado e difícil de chegar ao consenso é, na verdade, um longo processo para garantir que todos percebam que seus pontos de vista não foram ignorados.

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“Nós” — enquanto “o Ocidente” (o que quer que isso signifique), como o “mundo moderno”, ou qualquer outra construção — não somos tão especiais como gostamos de pensar; […] não somos os únicos povos que já praticaram a democracia; […] na verdade, em vez de disseminar a democracia pelo mundo, os governos “ocidentais” têm gastado muito tempo se intrometendo nas vidas de pessoas que já praticavam a democracia há milhares de anos e, de uma forma ou de outra, dizendo para elas pararem com isso.
Esses pobres mulatos provavelmente também tinham mais respeito pela ideia de “propriedade” que seus instrutores brancos, quando consideramos que os brancos que altruisticamente estenderam os benefícios da civilização ocidental ao resto do mundo já haviam roubado a grande maioria da população doméstica de suas propriedades (e.g., os cercamentos na Inglaterra) antes de decidirem que os direitos de propriedade eram sagrados. Eles também roubaram a maior parte das propriedades do Terceiro Mundo antes de julgarem que os locais finalmente estavam aptos a aproveitar as bênçãos da liberdade sem supervisão branca. Nesse ponto, o mandamento “Respeitarás os direitos de propriedade — começando agora!” não era retroativo — ele não se aplicava à enorme massa de riquezas que os brancos e seus ancestrais já haviam saqueado e continuavam a concentrar. Assim, o efeito principal das ideias ocidentais a respeito dos “direitos de propriedade” foi proteger as posses da elite e das corporações transnacionais que retiveram as propriedades de todas as terras e recursos minerais que as gerações anteriores de homens brancos ocidentais haviam pilhado com o colonialismo.

Assim, ao que parece, as pessoas comuns em todo o mundo já haviam encontrado formas de lidar umas com as outras como iguais, resolvendo suas diferenças de forma pacífica sem os homens ocidentais desenvolvendo o libertarianismo para elas, e quando os homens brancos ocidentais finalmente chegaram com suas novas e melhores ideias sobre a Liberdade com L maiúsculo, eles mataram, escravizaram e roubaram a maior parte da raça humana como compensação por sua benevolência.

Um trecho do filme Cool Hand Luke (lançado no Brasil como Rebeldia Indomável) se aplica muito bem aqui. Um dos guardas na fazenda prisão diz para Luke que o som das correntes que ele está usando o “lembrarão do que eu estou dizendo — para seu próprio bem”. E Luke responde: “Preferia que você parasse de ser tão bom para mim, Capitão“.