Talvez por viver em Chicago ou porque trabalho com outros advogados, em minha vida cotidiana estou rodeado por pessoas que se identificam com a esquerda americana e democratas centristas para quem a mera menção da palavra “libertário” incita pesadelos com a direita do Tea Party. Infelizmente, qualquer possibilidade de diálogo com esse grupo de pessoas acaba quando me identifico como libertário; para essas pessoas, o libertarianismo é a extrema direita de um espectro político americano unidimensional a que foram condicionadas a nunca questionar. Frequentemente, sabem algo sobre Ayn Rand até o ponto em que são capazes de considerar o libertarianismo como uma defesa simplista e impiedosa da ganância corporativa, do status quo econômico em que o 1% se torna cada vez mais rico enquanto a classe média diminui e os pobres sofrem em destituição. Ironicamente, esse tipo de social-democrata centrista provavelmente entende os efeitos do capitalismo melhor do que muitos libertários, percebendo a predação econômica e procurando (de forma não-sistemática) por algo que controle seus impulsos. O que eles não compreendem, porém, é o libertarianismo como uma filosofia real ou o abismo que separa o sistema econômico atual do livre mercado genuíno.
Por causa dessa repulsa reflexiva à mera menção do libertarianismo, minhas experiências me levaram a descrever minha posição política como “individualismo de esquerda”. Essa caracterização, pelo que noto, é mais convidativa a perguntas em vez de diatribes raivosas, preparando o terreno para uma conversa proveitosa e não dando lugar a um debate fútil. Peguei a expressão “individualismo de esquerda” de Eunice Minette Schuster, cuja dissertação Native American Anarchism tinha como subtítulo “A Study of Left-Wing American Individualism” (em português, “Um estudo do individualismo americano de esquerda”). O livro de Schuster segeu o anarquismo americano desde suas formas nascentes e prototípicas até seu desenvolvimento em um sistema filosófico e movimento distintos. Seu estudo é importante por dar atenção a uma corrente política que pode parecer confusa e contraditória no contexto dos debates atuais.
Os anarquistas individualistas que Schuster discute na parte do seu livro que trata o anarquismo em seu estado “maduro” eram individualistas extremos e socialistas, arquitetos de um projeto que nós do Centro por uma Sociedade Sem Estado (C4SS) tentamos continuar atualmente. Como defensores da liberdade total de competição, dos direitos de propriedade e da soberania do indivíduo, os anarquistas individualistas são parte da história do movimento libertário contemporâneo. Paralelamente, como o C4SS de hoje em dia, esse grupo se opunha ao capitalismo e considerava o socialismo como o “grande movimento antirroubo”, nas palavras do reformador radical Ezra Heywood. Ao contrário dos libertários atuais, que frequentemente demonizam os pobres como “parasitas” do assistencialismo, pensadores como Benjamin Tucker, Ezra Heywood e Josiah Warren (para mencionar somente alguns) viam os ricos como a verdadeira classe ociosa e parasitária, como beneficiários de privilégios que permitiam que eles manobrassem o sistema para impedir a competição real.
Esses antigos libertários viam que a liberdade e a competição funcionavam por todos os motivos que conhecemos atualmente: divisão e especialização do trabalho, grandes quantidades de informação destiladas em preços e a impossibilidade de planejar a economia através do maior de todos os monopólios, o estado. Eles argumentavam que a competição genuína em um livre mercado é a forma mais segura de garantir que o trabalho receba seu produto total, resolvendo, assim, o que era chamado com frequência de a Questão Trabalhista; isso os tornava socialistas, mesmo que eles não se encaixassem tão confortavelmente dentro do movimento socialista. Também não se encaixavam bem entre as fileiras liberais, que defendiam o livre comércio e a competição — os economistas políticos —, e se viam com frequência tendo que ensinar aos economistas sua própria doutrina, apontando os erros e inconsistências que caracterizavam muito daquilo que era considerado argumento em defesa do livre comércio.
Os anarquistas individualistas eram fanáticos pela coerência; se o trabalho tinha que ser posto em competição, sujeito à oferta e à demanda, então o capital também deveria. Como aponta Schuster, o “anarquismo científico” proposto por indivíduos como Benjamin Tucker, portanto, “não tinha apelo para o Capitalista, porque ele não defendia um ‘individualismo resistente’, mas um individualismo universal” (ênfase minha). Uma vez que os individualistas consideravam a renda, os juros e os lucros (a “trindade da usura) como resultados aproximados dos privilégios coercitivos, eles eram tratados como similares aos impostos, permitindo que os donos do capital se apropriassem a diferença entre os preços sob um regime de privilégio e os preços em um regime de competição aberta. A competição do mercado, portanto, não era o inimigo, mas o aliado do trabalhador. O argumento do anarquismo de mercado é simples: se insistimos que todos têm direito àquilo que conseguem obter num livre mercado, então devemos ao menos tentar chegar a um livre mercado. E um livre mercado não pode tolerar algumas das características históricas mais comuns do capitalismo: o roubo agressivo de terras em larga escala, os sistemas regulatórios e de licenciamento que funcionam como barreiras de alto custo à entrada no mercado e como barreiras ao autoemprego, vários subsídios diretos e indiretos que redistribuem renda a firmas bem conectadas e o sistema governamental de leis e instituições financeiras que produz o cartel de Wall Street que temos atualmente. Assim, o capitalismo parece não combinar com o que os libertários de fato querem quando dão seu apoio ao livre mercado. Não estamos tão perto assim de um sistema de livre mercado como muitos libertários gostam de pensar. Não precisamos apenas de alguns ajustes e algumas reformas aqui e acolá, de algumas privatizações de monopólios estatais e da desregulamentação de algumas indústrias. Para chegar num sistema livre, precisaríamos de uma ruptura completa e sistemática com a tirania capitalista que temos há tanto tempo, um sistema que é o sucessor direto dos sistemas estatistas, desde o feudalismo até o mercantilismo.
Anarquistas como Warren e Tucker compreendiam esse fato e passaram suas vidas lutando contra a desigualdade do status quo capitalista que coloca os trabalhadores em desvantagens sistemáticas. E apesar dos esforços em colocá-los na direita política — ou mesmo de tirá-los da tradição anarquista —, eles pertencem (se é que pertecem a alguma ponta do espectro) à esquerda, como entendia Schuster. Representando a tremenda falaa de compreensão em relação ao anarquismo individualista entre acadêmicos de esquerda, o historiador David DeLeon, em seu livro The American as Anarchist, afirma que Benjamin Tucker é um “libertário de direita” e, incrivelmente, aponta Ronald Reagan e George Wallace como seus sucessores ideológicos. Em outros pontos do livro, DeLeon classifica casualmente Voltairine de Cleyre — cujas explorações dentro do anarquismo não se prestam facilmente a rótulos — como “anarcocomunista”. Preocupante é também sua incrível alegação de que Ralph Waldo Emerson, Henry David Thoreau e Walt Whitman todos eram libertários de direita. Se alguém que está tão envolvido nos estudos profissionais desses personagens e de seus movimentos é capaz de interpretar erroneamente suas circunstâncias, não é de surpreender que o anarquismo individualista seja complexo para a maior parte dos leigos em filosofia política.
Apresentar a mim mesmo como “individualista de esquerda” é uma das minhas atitudes para reintroduzir o anarquismo individualista do século 19 no discurso contemporâneo, uma tradição que equilibra o indivíduo e a comunidade de uma maneira que é desesperadamente necessária em um mundo dominado pelo poder centralizado. O movimento libertário, além disso, não deve se apressar tanto em desprezar anarquistas como Tucker como se fossem ignorantes econômicos de eras passadas. Afinal, qualquer consideração sobre os relacionamentos econômicos em um livre mercado necessariamente será marcado pela especulação. Os libertários que acreditam que os relacionamentos seriam como os atuais têm pouca imaginação e não conseguem nem imaginar a profundidade das mudanças que um real respeito à soberania individual traria.