Sérgio Malbergier recentemente escreveu (“É a estupidez, estúpido!“, Folha de S. Paulo, 11/09) sobre aquilo que, segundo ele, caracteriza a corrida presidencial brasileira deste ano: a ignorância do eleitorado. Malbergier acredita que os candidatos e marketeiros políticos estão tão convencidos da estupidez (Malbergier parece não diferenciar entre estupidez e ignorância) do eleitorado que apostam todas as suas fichas em propostas vazias que ignoram princípios econômicos elementares.
Malbergier está certo, é claro. Os candidatos, não só nesta campanha eleitoral como em qualquer outra em qualquer lugar do planeta, estão plenamente convencidos de que o povo não passa de uma massa de descerebrados que pode ser moldada e manipulada de acordo com seus caprichos. Mas Malgerbier vai mais além e não pretende descrever apenas como os políticos veem a situação; para ele, o povo é, sim, estúpido. Prova disso seria a impopularidade de discussões sobre “austeridade” na campanha.
Há uma certa vira-latice nesse diagnóstico, já que em países da Europa a população demonstrou forte oposição aos cortes nos gastos sociais. Deixando de lado questões sobre a relevância de programas de austeridade (afinal, subsídios corporativos são esmagadoramente maiores do que projetos assistenciais), eu pretendo focar na questão mais basilar: o povo é estúpido?
Alguns economistas tendem a utilizar o conceito de ignorância racional para descrever o comportamento do povo ao votar. Simplesmente não vale a pena para o indivíduo médio se preocupar com questões políticas sobre as quais ele não terá influência palpável. De acordo com essa teoria, o povo votaria mal porque os incentivos para que ele se informe sobre questões sociais relevantes são ruins. Os custos são grandes demais em comparação aos possíveis benefícios em eleições que envolvem de centenas de milhares a milhões de pessoas.
É claro, isso não é por acaso: a democracia representativa é desenhada para mitigar a força das opiniões que vêm de baixo. O sistema é montado de forma a perpetuar a influência da elite política e minimizar mudanças significativas. A democracia representativa apenas garante que haja uma rotatividade entre elites no poder sem violência; antes da democracia ocidental, mudanças no corpo da elite dominante requeriam muito sangue e sofrimento. Isso não significa dizer que o povo não exerça influência sobre o governo, mas implica que essa influência é muito menor do que normalmente se presume. A própria definição do que está sujeito à discussão pública ou do que são as questões sociais mais urgentes é pautada pelas opiniões da elite política.
Contudo, ignorância racional, embora válida, parece ser uma teoria limitada. A população, de maneira geral, apresenta opiniões desinformadas sobre temas políticos e econômicos não porque seja estúpida ou não veja benefícios em conhecer as questões políticas mais de perto, mas porque essas questões jamais se apresentam claramente para o público. Não é apenas “racional” para o povo não se interessar por política; é praticamente sua única opção.
A intelligentsia tende a achar que o povo é incapaz de pensar por si mesmo e que quaisquer mudanças sociais sofrerão resistência do público ignorante. Os candidatos contam com o conservadorismo reativo de grande parte da população para se elegerem. Nenhum dos que lideram as pesquisas presidenciais pretende fazer qualquer mudança relevante em questões frequentes em debates sociais atuais. Aborto, casamento homossexual e liberação das drogas não figuram em seus programas de governo. Mas isso acontece porque essas questões nunca são sujeitas a debates públicos.
É evidente que o povo atualmente vai se manifestar, por exemplo, contra a liberação das drogas; esse é o status quo. As pesquisas de opinião pública que pretendem refletir as posições médias do eleitorado são apenas um espelho do status quo. As instituições atuais existem porque contam com apoio da população. Se a população, de maneira geral, não apoiasse essas instituições, seria difícil que elas resistissem por muito tempo. Logo, dizer que o povo não apoia a liberação das drogas não diz absolutamente nada: a liberação das drogas não foi colocada na pauta da discussão pública.
A real posição da população sobre questões sociais só se apresenta após o debate público, após a disseminação de argumentos contrários e favoráveis, quando as pessoas são socialmente levadas a adotar uma posição refletida sobre os assuntos sociais. Pesquisas políticas não mostram as opiniões refletidas do eleitorado, mas retratam posições impensadas e irrefletidas, que não foram sujeitas ao escrutínio público e que não tiveram que se justificar no debate aberto.
É conveniente para a elite política e intelectual presumir que o povo seja estúpido ou inexoravelmente ignorante, porque assim esses indivíduos conseguem carta branca para continuar a tomar as decisões em nome de todos.
Mas para que o povo deixe de ser ignorante em relação às questões que afetam suas vidas, não basta lamentar. É preciso apresentar os termos do debate de maneira clara. É preciso levar sua opinião em conta.
Os intelectuais e políticos da elite provavelmente não aceitarão argumento. Talvez sejam eles os estúpidos.