Vinte centavos levaram milhões de pessoas às ruas no Brasil em julho de 2013. Foram vinte centavos que canalizaram toda a insatisfação popular, direcionaram toda a raiva para as ruas, escancararam toda inaptidão do governo para lidar com os problemas do brasileiro. Foram apenas vinte centavos. Um pulo de R$ 3,00 para R$ 3,20 na passagem de ônibus em São Paulo. Cerca de 6% apenas.
Alguns zombaram do valor irrisório do aumento que levou tantos para as ruas. Mas a maioria dos brasileiros entendia: os 20 centavos esfregavam sal na ferida. O brasileiro passaria a pagar mais para andar em ônibus superlotados, parados por horas em um trânsito caótico, sem conforto e sem alternativas. Logo os manifestantes passaram a explicar que não era só pelos 20 centavos. Era um princípio em jogo, a ideia de que os 20 centavos a mais eram apenas a ponta do iceberg de um problema social muito maior, muito mais abrangente e sistêmico.
Mas, no final, não passavam de 20 centavos.
Voltando para 2014, recentemente, o New York Times publicou uma reportagem (“The Brazilian Bus Magnate Who’s Buying Up All the World’s Vinyl Records“, 8 de agosto) que conta a curiosa história do dono de uma empresa de ônibus com uma coleção impressionante de vinis. É impossível exagerar a extensão da coleção de Zero Freitas, de 62 anos, dono de uma empresa que atende a periferia de São Paulo: ele mesmo só consegue estimar os números da coleção chegando a “vários milhões”.
Freitas não economiza na sua obsessão nem coloca barreiras à coleta de discos. Nunca vendeu seus álbuns, nem os repetidos, e compra de todas as partes do mundo. Já importou cerca de 100.000 discos de Cuba. Emprega muitos estagiários para catalogar os discos guardados em um enorme galpão. Não discrimina entre estilos: de acordo com a reportagem, nem mesmo álbuns de polka estão a salvo de sua sanha acumuladora.
Zero Freitas é certamente uma figura curiosa, fã de Roberto Carlos, usa camiseta e bermuda cáqui, tem visual hippie e orçamento ilimitado para a compra de discos.
A matéria do New York Times, porém, deixou uma parte interessante de fora em sua tentativa de encontrar o ângulo humanizado da história: a empresa de Freitas é parte de um dos oligopólios mais criminosos do Brasil.
Você não precisa acreditar em mim, mas deve acreditar nas milhões de pessoas que saíram às ruas em 2013. Todas as pessoas que viajam ensardinhadas diariamente em São Paulo e em todo o Brasil nos coletivos provam que o transporte coletivo não se trata da área de atuação comercial mais honesta que existe atualmente.
Motoristas e cobradores das empresas de ônibus em São Paulo fizeram greves por melhores salários e condições de trabalho em maio de 2014, em setembro de 2013, em maio de 2012, em fevereiro de 2012, em julho de 2011. Levando em conta somente os últimos quatro anos.
O que foi negligenciado pela matéria é que a empresa de Freitas age em um mercado que não apenas impede a entrada de novas empresas de ônibus, mas que restringe quaisquer alternativas para o transporte na capital. Vans e mototáxis são desconhecidos em São Paulo. Licenças de táxis custam centenas de milhares de reais. Uber, que acaba de chegar, está sendo perseguido na cidade.
Não só as alternativas de transporte público são suprimidas, mas São Paulo convive com o rodízio de carros particulares desde 1997, tornando veículos particulares ainda menos atraentes (embora ainda melhores que o transporte público, como mostram os engarrafamentos recorde em São Paulo).
Por todos os lados, os paulistanos veem tentativas de restringir sua locomoção e inflar artificialmente o valor dos transportes. Incansavelmente, o governo e a quadrilha de empresários do transporte público trabalha para extrair o máximo possível da renda do indivíduo e aleijar seu movimento dentro da cidade.
E, para isso, queriam os 20 centavos em 2013.
Ninguém contou para os brasileiros que os 20 centavos por passagem seriam repassados a empreendedores milionários Zero Freitas, com a ambição de criar uma extensa biblioteca musical de milhões vinis.
Certamente os brasileiros ficariam satisfeitos em contribuir para uma causa tão nobre e talvez não tivessem tomado as ruas em 2013 para se recusarem a ser explorados.
Afinal, eram só 20 centavos e Zero Freitas, nos seus anúncios de compra de vinil, afirma que paga preços “mais altos que os de qualquer um”.