Zygmunt Bauman, em O mal estar na pós-modernidade, afirma que a religião, em sua forma tradicional, celebrava a insuficiência humana. Com um caminho mais ou menos traçado por toda a sua vida, o indivíduo se via impotente para mudar as condições em que estava inserido. Em contraste com o que ele considera a condição da “pós-modernidade”, que é de incerteza, a vida pré-moderna era calcada na certeza própria de sociedades estratificadas e classistas.
A pós-modernidade, sempre de acordo com Bauman, forçou uma mudança de discurso religioso: a vida, que antes era baseada na certeza e na insuficiência humana, passa a ser de incerteza. Por isso, o indivíduo, que não mais tem clareza sobre seu destino, agora deve se sentir autossuficiente. Por quê? Porque assim há ao menos a aparência de que ele é capaz de fazer as mudanças que considera desejáveis em sua vida. Se as mudanças que ocorrem em suas circunstâncias (e que causam essa incerteza típica da contemporaneidade) não estão sujeitas ao controle do sujeito, elas não são mais assunto humano e as pessoas perdem o interesse.
Na prática, é uma estratégia de marketing: a religião deve nos assegurar de que “nós podemos”, de que “somos capazes”, de que “conseguimos” e vamos alcançar nosso potencial máximo, caso contrário perdem relevância para o sujeito — a morte, o tema religioso por excelência, perdeu sua força, já que não está sujeita à ação humana.
Essa observação de Bauman — sobre a constante necessidade contemporânea da garantia de autossuficiência do indivíduo — me veio à mente com o início das movimentações para a campanha eleitoral no Brasil. Um discurso muito típico já voltou à discussão política: não faltam empregos, falta qualificação.
A ideia é análoga: se afirmamos que faltam empregos, o problema é estrutural e muito pouco pode ser feito individualmente para mudar essa situação. Em contraste, se “não faltam vagas, faltam apenas pessoas qualificadas para preenchê-las”, o indivíduo é colocado no centro da discussão. O desemprego passa a ser um problema não do sistema, mas das pessoas desempregadas. E se elas não conseguem sair da situação de desemprego, a culpa é individual, porque elas dispõem de todas as ferramentas para isso. Basta querer.
Na verdade, basta querer e utilizar os intermediários certos. No caso da religião, basta querer que você chega à salvação — mas não esqueça de que Deus passa pelo nosso templo. No caso da economia corporativa neoliberal, basta querer e ter os intermediários certos que há empregos e abundância para todos. No Brasil, ironicamente, os intermediários são os sindicatos.
Como observa Raúl Zibechi em Brasil potência: Entre a integração regional e um novo imperialismo, quem encampa o discurso de que falta apenas capacitação em vez de empregos são os maiores sindicatos do Brasil: a CUT e a Força Sindical, que também controlam os maiores fundos de pensão do país.
Para a CUT e a Força Sindical, o sistema atual é extremamente benéfico, já que são organizações plenamente inseridas no capitalismo corporativo brasileiro. Para elas, não convém uma mudança estrutural radical; a ideia é que os trabalhadores busquem a inserção no mercado através desses sindicatos, de seus “treinamentos” (que, por conta do Fundo de Amparo ao Trabalhador, garantem gordos repasses de dinheiro para essas organizações) e de sua posição “propositiva” em vez de “combativa”. Não é à toa que, como observa Zibechi, o 1º de Maio no Brasil é tomado por festas patrocinadas por sindicatos, não por protestos.
Esse entusiasmo por treinamentos e qualificação profissional é extremamente conveniente para as empresas, principalmente as maiores, que, com frequência, propagandeiam suas “vagas de trabalho” abertas que não são preenchidas pela falta de trabalhadores com as habilidades necessárias. O governo está sempre muito feliz em comprar a história, porque consegue manter o sistema atual, investir em programas francamente irrelevantes de capacitação e afirmar que é assim que se “combate o desemprego”, ao mesmo tempo em que eleva os requisitos de contratação e trabalho, eliminando do mercado os trabalhadores de baixa qualificação. As empresas, por outro lado, ficam muito felizes em externalizar seus custos, fazendo com que o governo prepare sua mão-de-obra gratuitamente, eliminando a necessidade de gastos em capital, de elevação de salários ou mesmo de diminuição de seu tamanho.
Em 2014, como sempre, os candidatos vão aparecer na sua TV para dizer que você pode realizar todos os seus sonhos, basta querer, porque tudo depende de você. Procure a escola técnica, o curso de qualificação ou o sindicato mais próximo.
Assim como a salvação só depende de você (por intermédio da igreja), seu bem estar econômico também só depende de você. Se você falhar, a culpa é sua.
Mas se conseguir um emprego estável com plano de carreira e benefícios, agradeça ao governo e aos sindicatos. Você quis, mas eles tornaram possível.