Um ensaio de abertura, deliberadamente provocador, será seguido por respostas de dentro e fora do C4SS. Contribuições e comentários dos leitores são muito bem vindos. A seguinte conversa começa com um artigo de Casey Given, “Qual o sentido de checar seus privilégios?“. Nathan Goodman, Kevin Carson, Casey Given e Cathy Reisenwitz prepararam uma série de artigos que desafiam, exploram e respondem aos temas apresentados no artigo original de Given. Ao longo da próxima semana, o C4SS publicará todas as suas respostas. A série final poderá ser acessada na categoria O sentido do privilégio.
Ao escrever o primeiro artigo desta Mutual Exchange, eu pretendia avançar três pontos a respeito do privilégio. Primeiro, que é uma estrutura ineficiente para promover a tolerância social, uma vez que ela parece induzir culpa em pessoas supostamente privilegiadas, gerando rejeição. Segundo, que ignora a opressão para intimidar indivíduos a se sentirem culpados por terem “privilégios” que deveriam, em última análise, deveriam ser direitos de todos. Terceiro, que não é uma teoria que apresenta um mapa para mudanças sociais, uma vez que a conscientização sobre os próprios privilégios não acaba com a pobreza ou a opressão sistemáticas.
Para minha surpresa, os três artigos em resposta ao meu primeiro concordaram comigo em vários desses argumentos, embora ainda rejeitassem a conclusão de que a análise do privilégio é, portanto, inadequada. A respeito do primeiro ponto, Cathy Reisenwitz concorda que o privilégio “faz com que brancos se sintam culpados”. Nathan Goodman reconhece que “muitas pessoas têm reações negativas à essa expressão [‘cheque seus privilégios’]”, o que o faz “preferir evitá-la”. Kevin Carson, do mesmo modo, admite que a rejeição aos exercícios contra o privilégio por parte de alguns estudantes ocorre por perceberem que se trata de uma tentativa de fazê-los se sentirem culpados. Contudo, ele não acha que o privilégio, se ensinado corretamente, devesse fazê-los se sentir dessa maneira: “Se essa for, de fato, sua percepção, parece que alguém não está ensinando direito ou, por algum motivo, alguém não está aprendendo.”
Sobre meu segundo argumento, Kevin reconhece que o objetivo final do ativismo social deve ser a extensão dos privilégios a todos, de forma que pessoas de todos os gêneros, raças, classes e capacidades se sintam “bem recebidos e normais, não excluídos” da vida cotidiana. Nathan reconhece que discussões sobre o privilégio “se tornam vagas” porque “direitos básicos ou expectativas razoáveis que temos em relação a vários humanos são citadas como ‘privilégios'”.
Sobre meu terceiro ponto, Cathy concorda que “chamar essas coisas de opressão ou privilégio não vai acabar com elas”.
Essas são concordâncias muito maiores do que eu esperava, o que me deixa ainda mais perplexo que os três tenham rejeitado minhas conclusões. Kevin e Nathan as rejeitam trazendo a interseccionalidade como alternativa e maneira de contornar os problemas comuns da teoria do privilégio, favorecendo “o exame de indivíduos e da opressão e privilégios que experimentam de maneira holística”, como colocado por Nathan.
Mas o que significaria a interseccionalidade em ação? Uma vez que o objetivo é analisar as várias interseções de privilégio e opressão sobre os quais o indivíduo se encontra (daí seu nome), me parece que a interseccionalidade não é capaz de coletivizar as pessoas como o privilégio. Afinal, a discussão do privilégio e da opressão experimentada por uma classe de pessoas necessariamente resulta em generalizações que excluem os membros mais marginalizados do grupo.
Como Kevin apropriadamente colocou, a noção de que exista “uma ‘experiência feminina típica’ pode excluir mulheres negras, trabalhadoras e trans”. A interseccionalidade, portanto, trabalha para evitar que “CEOs ricas como Sheryl Sandberg e Marissa Mayer se passem por porta-vozes das ‘mulheres típicas’ e evitem posições similares à hegemonia por uma classe profissional de ‘lideranças negras’ dentro do movimento pelos direitos civis”.
Neste caso, os defensores da interseccionalidade deveriam alegar que quaisquer afirmações coletivizantes da teoria do privilégio devem ser vistas com suspeita. Por exemplo, o exercício do marshmallow da Universidade de Dellaware mencionado por mim não seria apropriado porque faz julgamentos normativos de classe sem examinar a interseccionalidade das identidades de cada indivíduo. Um estudante branco pode não possuir marshmallows em sua boca, por exemplo, apesar do fato de que ele saiu da extrema pobreza. Uma lésbica pode ter a mesma quantidade de marshmallows na boca que uma mulher trans, embora as duas experimentem dois tipos radicalmente diferentes de intolerância LGBT.
Dessa forma, a interseccionalidade na prática parece fazer com que a teoria do privilégio se torne obsoleta. Qualquer tentativa de ilustrar exemplos de privilégios hierárquicos fatalmente fracassaria, uma vez que os indivíduos experimentam a opressão de formas complexas e multifacetadas. Assim, a própria teoria que deveria salvar a análise de privilégios acaba por desbancá-la. A única solução é fazer julgamentos individuais com base em circunstâncias específicas sobre as interseções de privilégios e opressões por que a pessoa passou em toda a sua vida.
Devo admitir aqui que existe uma mensagem interessante por trás da expressão “cheque seus privilégios”. Em seu núcleo está um apelo para que os indivíduos se conscientizem a respeito da opressão sentida por outras pessoas durante toda a sua vida. Contudo, mesmo essa função não é nova ou revolucionária. Esse apelo à humildade já existe há décadas sob o antigo adágio “Antes de julgar alguém, ande um quilômetro com seus sapatos”. Não há dúvida de que os indivíduos devam estar conscientes das vantagens e desvantagens sociais de que desfrutam em sua interação com os outros, mas isso é apenas uma cortesia comum.
A teoria do privilégio, por outro lado, transforma essa educação básica em uma ideia auto-congratulatória de mudança social. Mas, como eu disse em meu artigo original, a conscientização sobre as próprias circunstâncias não é capaz de acabar com a opressão sistemática. É por isso que os libertários devem enfatizar a opressão e não o privilégio na luta contra as políticas governamentais que sacrificam os menos privilegiados.
Talvez o maior problema da teoria do privilégio é que ela pinta o avanço da história com tons nebulosos. Embora seja necessário ainda mais progresso, vivemos hoje em dia no momento mais socialmente tolerante da história humana. A maioria de nós trabalha, vive e interage com pessoas de diferentes raças, religiões e sexualidades regularmente. Esse fato notável é a exceção, não a regra durante a história. A emergência de direitos de propriedade e do império da lei ao longo dos últimos séculos permitiu lentamente que a sociedade chegasse ao ponto em que pessoas de origens completamente diferentes possam coabitar o mesmo espaço, o mesmo ambiente de trabalho, o mesmo bairro ou até a mesma casa sem conflito. Ao invés de nos distrairmos por uma análise divisiva sobre o privilégio, os libertários devem procurar promover a força unificadora dos mercados através da luta contra a opressão governamental.