Criei a expressão “libertarianismo vulgar” alguns anos atrás para descrever a atitude de notórios libertários ao defender reflexivamente o sistema capitalista corporativo atual como se fosse o “livre mercado”. Para eles, os princípios de “livre mercado” justificam os males da economia corporativista. Recentemente, pude testemunhar um dos piores exemplos desse fenômeno, cortesia de John Stossel (“Debunking Popular Nonsense About Income Mobility in America“, Reason, 4 de junho).
Os libertários vulgares que fazem apologia ao capitalismo usam o termo “livre mercado” de maneira equívoca. Parecem ter dificuldade em lembrar, de um momento ao outro, se defendem o capitalismo existente ou os princípios de livre mercado. Assim, vemos os artigos convencionais que afirmam que os ricos não podem enriquecer às custas dos pobres porque “não é assim que o livre mercado funciona” — presumindo implicitamente que vivemos em um regime de livre mercado. Quando provocados, esses libertários relutantemente admitirão que não vivemos em um livre mercado e que o sistema atual inclui diversas intervenções em benefício dos ricos. Porém, logo que pensam ter se safado das acusações, eles voltam a defender a riqueza das corporações existentes com base nos “princípios do livre mercado”.
Stossel dá um dos melhores exemplos dessa prática. Inicialmente, ele concede o argumento elaborado por Thomas Piketty, no livro O Capital no século 21, de que a concentração de riquezas nas mãos dos super-ricos atingiu seu auge. É verdade, afirma ele, que “a disparidade de renda cresceu”. “Agora o 1% mais rico possui mais riquezas que os 90% mais pobres!” Mas não há com que se preocupar!
Stossel alega que o importante não é a divisão relativa da riqueza entre os vários setores da população, mas a mobilidade entre eles. E ficar rico está mais fácil do que nunca. Veja, por exemplo, Oprah Winfrey (que chegou a precisar de assistência estatal)! E Sam Walton (que era empregado em fazenda)!
Tudo isso não passa de bobagem. Em primeiro lugar, Stossel subestima injustificadamente a dependência de trajetória. Por exemplo, há diferenças estruturais contínuas entre a segurança econômica e o bem estar de famílias negras que viveram em áreas em que o exército americano concedeu terras a antigos escravos durante a época da Reconstrução após a Guerra Civil dos Estados Unidos e aquelas famílias que não viveram. Também há outras injustiças estruturais contínuas, como a remoção dos agricultores negros de suas terras após a Segunda Guerra Mundial ou o redlining promovido pelos bancos.
Além disso, sempre houve significativa mobilidade social entre as classes durante a história. Sem essa mobilidade, se transformariam em sistemas de castas incapazes de se adaptar a mudanças. É por isso que o Partido Interno, em 1984 de George Orwell, é uma meritocracia que recruta indivíduos talentosos do Partido Externo e dos Proles a cada geração. O sistema soviético de classes provavelmente era mais móvel que o americano; a maior parte da economia estatal, no século 20, era povoada por milhões de trabalhadores e camponeses (e por seus filhos), que entraram no Partido nos anos 1920 e 1930 e foram mandados para escolas vocacionais. Mesmo em Roma, alguns escravos que fossem mais empreendedores ou astutos conseguiam comprar a própria liberdade e acabavam se tornando, eles mesmos, donos de escravos. Esses fatos significam que o domínio do Ingsoc em 1984, dos apparatchik soviéticos sobre os cidadãos médios ou dos senhores romanos sobre os escravos eram legítimos? É um argumento incrivelmente estúpido.
Mas o libertarianismo vulgar mostra mesmo a sua cara quando Stossel despreza considerações de justiça ou injustiça na distribuição de riquezas: “Além do mais, os ricos não ficam ricos às custas dos pobres (a não ser que roubem ou se aliem ao governo)”.
Parece que esse “a não ser” é bem importante. Stossel escreve como se a legitimidade das fortunas dos super-ricos fossem a regra e cumplicidade com o governo fosse uma rara exceção. Na verdade, Stossel ocasionalmente fala sobre alguns privilégios estatais canalizados aos ricos (como subsídios aos seguros de suas casas de praia) ou sobre o assistencialismo corporativo. Mas suas reação instintiva, quando alguém ataca a polarização da riqueza e do poder das grandes empresas, é interpretar o argumento como um ataque ao “livre mercado” e levantar a voz em defesa dos ricos e poderosos.
O capitalismo corporativo que conhecemos, porém, é definido por sua relação com o estatismo e a esmagadora maioria das riquezas dos super-ricos é retirada de direitos de propriedade artificiais ou da escassez forçada pelo estado. Duvido que seria possível acumular uma fortuna de 100 milhões em um livre mercado — muito menos de 100 bilhões. As corporações que compõem a lista da Fortune 500, sem qualquer exceção de que eu me lembre, devem seus lucros e participações no mercado a subsídios, monopólios, barreiras de entrada e cartéis regulatórios patrocinados pelo governo.
Stossel não está atacando a intervenção estatal. Está defendendo um sistema baseado nela.