Deve-se recordar que, na origem da Marcha, está o slut-shaming, uma forma de controle do comportamento feminino baseada em humilhação e intimidação sistemáticas de mulheres que se desviam de determinados parâmetros de conduta sexual. O efeito disso é regular a sexualidade feminina de modo mais rigoroso e repressor do que a masculina, normalizando a desigualdade de gênero.
Associado a isso, há a “cultura de estupro”: elementos culturais que, mesmo da perspectiva da cultura “respeitável” (isto é, não criminosa) da sociedade, normalizam ou relativizam certas formas de estupro e assédio sobre o corpo (geralmente) feminino. O efeito disso é a utilização da possibilidade do estupro e do assédio sobre o corpo (e, indissociavelmente, o psicológico e o emocional) como uma forma de intimidação e, no limite, de punição e correção da sexualidade feminina.
É quando se vê desde essa perspectiva mais abrangente que se pode ver a ligação entre os fenômenos: o slut-shaming pode servir de trampolim para justificar o assédio e o estupro. Um exemplo seria rotular determinadas mulheres como “vadias”, para, então, desculpar ou ser condescendente com a violação da intimidade e da dignidade sexual delas porque elas estariam “provocando” e seriam de algum modo culpáveis por isso. (Para uma instância mais sutil, veja este texto onde critico misturar probabilidade estatística com moralização da vítima.)
O caráter profundamente anti-libertário desse tipo de prática cultural é manifesto: trata-se de um desrespeito à liberdade sexual e aos arranjos consentidos entre adultos autônomos que dela derivam, no limite chegando mesmo a negar às mulheres o seu direito de negar consentimento à investida masculina caso elas de alguma forma tenham se desviado de certos padrões.
A cultura brasileira historicamente foi marcada pelo sexismo. Em 1927, a anarquista individualista Maria Lacerda de Moura, uma das pioneiras do feminismo no Brasil e envolvida com o movimento operário à época, escreveu o texto “Seduzidas e Desonradas” no jornal O Combate onde denunciava o duplo padrão de moralidade e o slut-shaming, focado na virgindade feminina e sua guarda para o casamento, com severas penalidades às desviantes:
E ai daquela que se esquece do protocolo.No Brasil de Maria Lacerda de Moura, os tabus ligados à virgindade pré-marital catalisavam as atitudes sexistas. No Brasil da Marcha das Vadias de 2014, temos a divulgação de fotos e vídeos íntimos de garotas, nuas ou mantendo relação sexual, por meio do WhatsApp, possibilitando assim a rápida viralização e subsequente exposição pública. É o revenge porn, a vingança de um ex-parceiro sexual, que vaza fotos e vídeos privados como se fosse pornografia, com o objetivo de expor sua ex-parceira.
Se, hoje, não é lapidada, se não é enterrada viva como as vestais, se não é apedrejada até a morte, se não sofre os suplícios do poviléu fanático de outros tempos, inventou-se o suicídio: é obrigada a desertar da vida por si mesma, porque a literatura, a imprensa, toda gente aponta-a com o dedo, vociferando o “desgraçada”, “perdida”, “desonrada”, “desonesta”, abrindo-lhe, no caso contrario, as portas da prostituição barata das calçadas, com todo o seu cortejo de misérias, de sífilis, de bordeis, de humilhações, do hospital e da vala comum.
Miserável moral de coronéis, de covardes e cretinos!
Como nos dias de Maria Lacerda de Moura, as garotas vítimas dessa divulgação imoral e criminosa (pois que fere o preceito do consentimento voluntário livre) são humilhadas, intimidadas, perseguidas, assediadas, desencadeando todo um ciclo de slut-shaming , culpabilização da vítima e pretexto para assédio em seu círculo de convivência ou no mundo virtual que, a depender de sua intensidade e do próprio perfil emocional da vítima, pode mesmo levar a vítima ao suicídio, como no caso da Julia Rebeca. Os tempos mudaram, mas muita daquela “miserável moral de coronéis, de covardes e cretinos” ainda persiste na mentalidade de muitos.
E como mudar isso? Na tradição feminista, uma importante ferramenta é a ação direta, buscando promover mudança social descentralizada a partir da “base”, sem apelar para estruturas coercitivas como o Estado. Charles Johnson refere-se às formas de solidariedade e resistência que muitas feministas empregaram historicamente para mudar as atitudes sociais e prover ajuda para mulheres que dela necessitassem, como “grupos, reuniōes, culture jamming, redes de mulheres agredidas, centros de combate ao estupro e outros espaços feministas” originalmente sem conexão com o governo.
Dentro desta admirável e libertária tradição de ação direta feminista, atualizada para tempos onde a tecnologia propiciou novas formas de slut-shaming, temos um grupo de seis meninas feministas de 16 anos de idade que criaram um protótipo de aplicativo de celular, o For You.
A ideia, conforme já divulgado, é apoiar meninas adolescentes que tiveram suas fotos vazadas na internet, criando um espaço seguro onde possam conhecer outras vítimas, discutir os temas que circundam a revenge porn (por meio de abas educativas sobre legislação, manifestos sobre como isto não é sua culpa, depoimentos de vítimas, etc.) e inclusive embaixadoras locais para montarem grupos presenciais que combatam a intimidação que as vítimas possam vir a sofrer. Em vídeo, elas explicam como querem usar a tecnologia para distribuir informação sobre abuso online, empoderando as vítimas.
“Se eles usam apps para nos humilhar, nós revidamos usando apps para nos empoderar e organizar!”, é o mote do grupo formado por Camila Ziron, Estela Machado, Hadassa Mussi, Larissa Rodrigues e Letícia Santos. Elas estão participando do concurso Technovation Challenge, cujo grupo vencedor receberá 10.000 dólares de financiamento e suporte para desenvolvimento.
A emancipação feminina está sendo e será obtida por meio da ampliação e do esclarecimento das redes de cooperação social voluntária. Isso nos leva a uma perspectiva de mudança social feminista mais sociológica, evolucionária, microeconômica. Mas também é dessa maneira que a liberdade humana em relação às estruturas coercitivas do Estado será alcançada. Coincidência? De modo algum, pois a emancipação feminina é uma instância do progresso em direção a uma sociedade livre.