Na Crimeia, tropas uniformizadas sem identificação ocuparam aeroportos e tomaram controle da região. Em Moscou, o parlamento chapa branca russo autorizou que o ex-oficial da KGB Vladimir Putin empregasse forças militares na Ucrânia. Em Kiev, capital da Ucrânia, uma insurreição – que não se sabe ainda se é espontânea ou se é composta principalmente de nacionalistas xenófobos – derrubou o presidente eleito e o forçou a fugir da capital. No Ocidente, as mesmas vozes de sempre estão pedindo para que os Estados Unidos e seus aliados “façam alguma coisa”. Neste centenário da Primeira Guerra Mundial, mais uma grande crise negligenciada pelas forças imperiais ameaça causar grandes problemas.
A posição anarquista é óbvia e previsível – nós nos opomos à própria existência do estado, portanto somos contrários a todas as guerras. Contudo, pelos motivos delineados principalmente pela crítica anarquista de mercado da ação estatal, uma intervenção nesta disputa é uma ideia especialmente ruim e provavelmente trará resultados que até mesmo os intervencionistas considerarão indesejáveis. Para entender por quê, devemos examinar a história da Ucrânia e da Europa Oriental.
Para os ocidentais, a história da região é dominada pela União Soviética e determinada por seu colapso há 20 anos. Porém, a União Soviética era uma mera continuação numa nova roupagem ideológica do antigo Império Russo, que, ao longo dos séculos expandiu paulatinamente sua hegemonia sobre os povos fronteiriços até que dominasse desde o Mar Báltico até o Mar de Bering e deste o Ártico até a Pérsia, a Mongólia e a China, formando o maior império colonial já visto.
A natureza essencialmente colonial do Império Russo frequentemente é ignorada porque seus domínios não eram formados por territórios ultramarinos populados por pessoas de cores e culturas dramaticamente diferentes. Além disso, essa natureza também era ofuscada pela retórica anti-colonial da URSS, que, apesar de suas alegações, era, na verdade, uma continuação do projeto imperial russo. A Ucrânia é um dos exemplos paradigmáticos de como a Rússia tratava o “estrangeiro próximo”, que é o termo russo para suas colônias. Oficialmente, os ucranianos não eram considerados uma nacionalidade separada, a língua ucraniana era proibida, as igrejas da Ucrânia eram forçadas a se adequar as normas religiosas russas ou eram obrigadas a viver na ilegalidade para fazer celebrações ou utilizar roupas tradicionais. A política da oficial, tanto na Ucrânia quanto nas outras colônias, era a de “russificação”, isto é, a substituição das culturas locais pela cultura russa, transformando os colonos em russos.
Esse tipo de política é comum na formação de estados. Como documentado por Graham Robb em seu livro The Discovery of France, estados centralizados invariavelmente impõem suas línguas, religião e cultura preferidas numa tentativa de “unificar o povo”, o que significa aculturá-lo de forma que sua submissão ao centro pareça menos uma imposição externa e mais um tipo de patriotismo. São padrões que formam uma continuidade entre os processos “domésticos” de aculturação estatal, como aqueles empreendidos por escolas públicas e igrejas, e as formas mais comuns de “colonialismo”.
O tratamento russo do “exterior próximo” se localiza dentro de uma linha contínua entre o “colonialismo doméstico” da formação do estado e o colonialismo mais comum, em territórios longínquos. As culturas subjugadas ao estado russo, particularmente as que falavam línguas eslavas e que se identificavam como eslavas, de fato são parentes próximas da cultura russa. Tal proximidade pode obscurecer a natureza fundamentalmente imperial da expansão do estado russo – para os ocidentais, ela pode parecer similar a formas mais amplamente aceitas de formação do estado, nas quais o poder central afirma seu poder e “unifica a nação”, submetendo movimentos provinciais separatistas. Em formas mais comuns e menos defendidas de “imperialismo”, o colonizador subjuga os colonizados e substitui completamente a cultura indígena. As ideologias pan-eslavas patrocinadas pelos russos representam os eslavos – um agrupamento linguístico amplo e diverso de culturas basicamente diferentes – como um povo único sob a chefia do legítimo centro imperial russo, que era justificado a um momento pelo o tzarismo ortodoxo e, mais tarde, pelo “socialismo em um só país”.
Ao longo dos séculos, a interação com os sucessivos poderes colonialistas russos, com o ressurgimento intermitente de várias insurreições nacionalistas por vários povos das regiões entre a Rússia e a Alemanha, fomentou uma região de volatilidade política com fronteiras praticamente arbitrárias que não estabelecem quaisquer limites linguísticos, étnicos ou culturais. A política oficial da Rússia estimulava os assentamentos no exterior próximo, da mesma forma que a França estimulava assentamentos na Argélia, o que resultou em minorias expressivas de russos na maioria dos países colonizados. Em algumas regiões desses países, os russos são maioria, o que causa impactos similares ao assentamento de presbiterianos escoceses na Plantação de Ulster na Irlanda no século 17. Tentativas periódicas de extermínio cultural e físico dos povos indígenas criaram divisões profundas entre os colonizadores e colonizados. Para a população etnicamente ucraniana, Holodomor, a Grande Fome da Ucrânia, foi uma tentativa deliberada do governo soviético de exterminar a maior quantidade possível de ucranianos e destruí-los como povo. Nas narrativas russas, Holodomor, se é que aconteceu, foi uma fome comum, não uma política intencional do governo, e as lembranças ucranianas do acontecimento são vistas simplesmente como propaganda anti-Rússia. (Os paralelos com a Gorta Mór, a Grande Fome da Irlanda, são óbvios, uma vez que os irlandeses geralmente a veem como produto de uma política deliberada da Grã-Bretanha – “Deus enviou a peste, os ingleses enviaram a fome” -, enquanto a historiografia inglesa geralmente culpa a monocultura irlandesa e, no passado, quando o racismo era mais aberto, a natureza supostamente primitiva do povo da Irlanda.
Assim, na Ucrânia, há um estado dividido entre vários limites – ucranianos e russos, de forma mais óbvia, mas também cossacos e não-cossacos, ortodoxos e católicos, ucranianos e todas as minorias étnicas não-russas, entre outras. De fato, não é possível saber quais são todas as divisões dentro da Ucrânia, porque só temos acesso a informações relevantes de segunda mão, filtradas por vários pontos de vista políticos. Além disso, os objetivos para o Ocidente em uma intervenção na Ucrânia dependem largamente dessas divisões – ao contrário do desejo abertamente imperialista de Putin de garantir a hegemonia russa na região, o Ocidente supostamente quer o estabelecimento de um governo “estável e democrático” e apoia as resoluções de Vestfália que dão grande importância à inviolabilidade das fronteiras – fronteiras estas que, no caso do antigo Império Russo e da URSS, foram desenhadas em sua maior parte por burocratas imperiais por motivos de estado.
Portanto, embora o emprego da força militar seja sempre indesejável para os anarquistas e embora também nós condenemos a tentativa de Putin de subjugar a Ucrânia, uma intervenção militar ocidental seria particularmente prejudicial nesta situação. Nenhum acordo imposto por forças externas deixará todas as partes satisfeitas, uma vez que as partes perdedoras certamente continuarão a nutrir sentimentos revanchistas e estarão determinadas a se vingar assim que o apoio ocidental deixar de existir. Ao intervir para criar uma situação mais desejável, o Ocidente se comprometerá a perpetuar essa situação, como podemos ver o Iraque e no Afeganistão, e eventualmente se resignar a ver a ordem estabelecida entrar em colapso. A longa e complexa história da Ucrânia e o legado do imperialismo – já que, certamente, os descendentes de colonos russos na Ucrânia e em outros países próximos têm interesses tão legítimos quanto os dos escoceses-irlandeses e os dos brancos americanos que vivem em terras anteriormente indígenas – complicam a questão, porque os assentamentos se assemelham a instâncias de planejamento central. Os planejadores, estejam eles num escritório da Gosplan ou em Foggy Bottom em Washington, D.C., não têm acesso a todas as informações relevantes para implementar seus planos. De fato, a informação necessária não existe, já que os povos da região precisam gerá-la através da resolução de suas próprias diferenças. Às vezes não existem respostas fáceis e, neste centenário da Primeira Guerra Mundial, nós devemos nos lembrar mais do que nunca como as intervenções numa crise podem sair do controle rapidamente. Os povos desta região só poderão criar uma paz duradoura se puderem negociar a colonização de suas regiões entre si próprios. Nossa presença só pioraria as coisas.