Propriedade e privatização libertárias: um paradigma alternativo - Kevin A. Carson

Carlton Hobbs recentemente desafiou a tendência da corrente principal dos libertários, defensores do livre-mercado e anarco-capitalistas a favorecer a corporação capitalista como modelo primário de propriedade e atividade econômica e a assumir que qualquer sociedade de livre-mercado futura será organizada no padrão do capitalismo corporativista. Como alternativa a essa forma de organização, Hobbs propôs a “propriedade comum sem estado”, com direito de usufruto possuído pelos habitantes de uma dada área, surgindo “sem acordos prévios formais, incorporando um grupo de donos potencialmente impreciso”. Ele apresentou como exemplos históricos desse tipo de propriedade direitos públicos às vias ou os direitos dos comuns sobre campos, poços ou bosques.1 As questões que ele levantou são aplicáveis numa escala muito maior.

Libertários e anarco-capitalistas, ao defenderem a abolição da propriedade e dos serviços estatais, tipicamente defendem um processo de “privatização” que depende pesadamente do modelo capitalista corporativista de propriedade. A propriedade do estado deveria ser leiloada e seus serviços executados, digamos, pela GiganteGlobalCorp LLC. E a imagem da futura economia de mercado, em relação aos empreendimentos produtivos, é simplesmente a presente economia corporativista menos o estado regulatório e de bem-estar — Uma versão idealizada do “capitalismo dos barões ladrões” do século XIX. A primeira tendência ignora outras alternativas, igualmente válidas de um ponto de vista anarquista de livre-mercado, tais como colocar os serviços governamentais como escolas e polícia sob o controle cooperativo de sua clientela anterior no nível das cidades ou bairros. E a última tendência ignora a questão do capitalismo de estado, da extensão à qual as gigantescas corporações que receberam uma parte enorme de seus lucros através do estado podem ser consideradas como propriedade privada legítima ou como resultado de roubo.

Ao desafiar essa afinidade estética pela corporação como a forma dominante de organização econômica, Karl Hess denunciou aqueles que simplesmente identificavam o libertarismo “com aqueles que desejam criar uma sociedade na qual os super-capitalistas sejam livres para acumular vastas possessões”. Escrevendo no Libertarian Forum em 1969, Hess argumentou, ao contrário, que
O Libertarismo é um movimento popular e um movimento de liberação. Ele busca o tipo de sociedade aberta, não-coercitiva, na qual pessoas vivas, livres e diferentes podem se associar voluntariamente, se desassociar, e participar, como acharem apropriado, das decisões que afetam suas próprias vidas. Isso significa um mercado verdadeiramente livre em tudo, desde idéias até idiossincrasias. Significa que as pessoas sejam livres para organizar coletivamente os recursos de suas comunidades imediatas ou organizá-los individualisticamente; significa a liberdade de ter um judiciário baseado na comunidade e sustentado por ela quando desejado, nenhum onde não for, ou serviços de arbitragem privados onde isso for visto como mais desejável. O mesmo com a polícia. O mesmo com as escolas, hospitais, fábricas, fazendas, laboratórios, parques e pensões. Liberdade significa o direito de moldar as próprias instituições. Se opõe ao direito dessas instituições te moldarem simplesmente por conta do poder estabelecido ou do status gerontológico.2
Hess desprezava a tendência cultural de muitos libertários de defender os direitos de propriedade privada a despeito de como foram adquiridos, e a assumir que aqueles presentemente no topo da economia capitalista de estado estavam simplesmente coletando a recompensa por um “passado virtuoso”.
Porque muitos de seus componentes [do movimento libertário] (…) vieram da direita permanece pelo menos uma aura ou, talvez, um miasma de defensividade, como se seus interesses centrais fossem, por exemplo, defender a propriedade privada. A verdade, é claro, é que o libertarismo pretende avançar os princípios da propriedade, mas de forma alguma deseja defender, bem ou mal, todas as propriedades que atualmente são chamadas de privadas.Muitas dessas propriedades são roubadas. Muitas têm títulos dúbios. Todas estão profundamente entrelaçadas com um estado imoral e coercitivo que amparou, se desenvolveu e lucrou com a escravidão, explorou e se expandiu por meio de uma política externa agressiva, imperial e colonial, e continua a manter as pessoas basicamente num relacionamento entre servos e senhores através das concentrações de poder político-econômicas.
Dada essa situação, Hess defendeu uma criativa análise libertária, confrontando as questões do “tratamento revolucionário das propriedades ‘privadas’ e ‘públicas’ roubadas em termos libertários, radicais e revolucionários”, incluindo, por exemplo: “A propriedade e/ou uso da terra numa situação de declínio do poder do estado”; “O controle acionário dos trabalhadores das comunidades ou das fábricas produtivas. (…) O que, por exemplo, deveria acontecer com a General Motors numa sociedade liberada?”; e a injustiça de libertar escravos e servos sem estabelecer seus direitos de propriedade das terras de seus prévios donos (i.e., “quarenta acres e uma mula”).

No espírito dos comentários de Hess, eu examinarei modelos libertários alternativos de “privatização” das propriedades e dos serviços do governo, e tentarei aplicar os mesmos princípios por analogia à questão de como lidar com os atuais beneficiários do capitalismo de estado numa sociedade de livre-mercado futura. Ao fazer isso, eu devo antes deixar claro que não sou um anarcocapitalista, como é a maioria dos visitantes regulares do Anti-State.com, mas um anarquista individualista influenciado principalmente por Tucker.

Meios alternativos de “privatizar” a propriedade do estado

A facção anarquista da Young Americans for Freedom (organização estudantil americana fundada nos anos 1960), em seu manifesto de 1969 The “Tranquil” Statement ("A ‘tranqüila’ declaração”) — um dos autores da qual foi Karl Hess —, expressou simpatia pelos estudantes radicais que ocuparam os campi das universidades. Em resposta às denúncias da direita de tais crimes contra a “propriedade privada”, o Statement observou que
a questão da propriedade privada não pertence a uma discussão das universidades americanas. Mesmo aquelas universidades que se passam por instituições privadas são, na verdade, altamente subsidiadas com recursos federais ou, como em muitos casos, sustentadas por fundos de pesquisas federais. A Universidade de Columbia é um excelente exemplo. Quase dois terços da receita de Columbia vem do governo, não de fontes privadas. Como, então, pode alguém razoável ou moralmente considerar a Universidade de Columbia uma instituição privada? (…) E, sendo ela uma propriedade pública (governamental, isto é, propriedade roubada), o libertário radical é justificado em tomá-la e retorná-la ao controle privado ou comunal. Isso, é claro, se aplica a toda instituição de ensino que seja subsidiada pelo governo ou que ajude de qualquer maneira o governo em sua usurpação dos direitos humanos básicos.3
As corporações privadas que recebem “de qualquer maneira” subsídios governamentais, é claro, podem ser escusadas por ver o sinistro potencial desse princípio.

Murray Rothbard, tomando a mesma posição num editorial em The Libertarian, ridicularizou o “grotesco” argumento randiano de que Columbia era uma “propriedade privada” e de que os estudantes portanto estavam violando esses “direitos sagrados”:
Além dos vários laços específicos com o Estado que os rebeldes de Columbia apontaram (…), quase dois terços da receita de Columbia vem de fontes governamentais e não privadas. Como diabos poderíamos continuar a chamá-la de instituição privada?
Defender os direitos de “propriedade privada” de universidades “francamente estatais” era, evidentemente, absurdo. Nesses casos,
A propriedade do governo é sempre e em todo lugar resultado de exploração, para o libertário; o libertário deve regozijar todas as vezes que qualquer parte da propriedade governamental, portanto roubada, for restituída por quaisquer meios necessários ao setor privado. (…)Portanto, o libertário deve aplaudir qualquer tentativa de retornar propriedades roubadas, do governo, ao setor privado, sendo sob o clamor de que “as ruas pertencem ao povo” ou “os parques pertencem ao povo”, ou de que as escolas pertencem àqueles que as usam, i.e., os estudantes e docentes. O libertário acredita que as coisas não corretamente possuídas são revertidas à primeira pessoa que as usa e as possui, e.g., o apropriador [N.T.: “homesteader”] que primeiro limpa e usa uma terra virgem; similarmente, o libertário deve apoiar qualquer tentativa pelos “apropriadores originais” do campus, os estudantes e professores, de tomar o poder nas universidades da burocracia governamental ou quasi-governamental.4
Rothbard argumentou que “o método mais prático de desestatização é simplesmente o de conceder o direito moral de propriedade à pessoa ou ao grupo que toma a propriedade do estado”. Isso implicaria, na maioria dos casos, tratar a propriedade do estado como vaga ou sem dono e reconhecer os direitos de apropriação daqueles que realmente as estão usando. No caso das universidades “públicas”,
os donos adequados dessas universidades são os “apropriadores originais”, aqueles que já a estavam usando e portanto “misturando o próprio trabalho” às instalações. (…) Isso implica a propriedade dos estudantes e/ou dos docentes sobre universidades.5
É possível aplicar esse princípio da apropriação da propriedade estatal por trabalhadores ou clientes de muitas formas. Larry Gambone propôs a “mutualização” dos serviços públicos como uma alternativa à privatização corporativista. Isso significa descentralizar o controle de, digamos, escolas, polícia, hospitais, etc., até menor unidade local viável (bairro ou comunidade) e então colocar esses serviços sob controle democrático de sua clientela. Por exemplo, as pessoas de uma cidade podem abolir o conselho escolar municipal e colocar cada escola sob controle de um conselho selecionado que deveria prestar contas aos pais dos alunos. Em última análise, a taxação compulsória acabaria e as escolas funcionariam com contribuições voluntárias dos usuários. Em termos práticos, a mutualização é mais ou menos equivalente à reorganização de todas as atividades estatais em cooperativas de consumidores.6

Privatização em sociedades pós-comunistas

Murray Rothbard e Hans-Hermann Hoppe tentaram aplicar o mesmo princípio da apropriação original da propriedade estatal em sociedades pós-comunistas.

Embora a abordagem de Rothbard quanto ao potencial libertário da combinação iugoslava do gerenciamento próprio dos trabalhadores e do socialismo de mercado fosse otimista demais e ingênua, sua proposição do princípío para sociedades pós-comunistas foi bastante sólida: “a terra para os camponeses e as fábricas para os trabalhadores, dessa forma tirando a propriedade das mãos do estado e colocando-a em mãos privadas”.7

A queda do império soviético e de seus satélites em 1989-91 transformou essa questão meramente teórica numa questão prática. O curso geralmente seguido no período seguinte envolvia a emissão de ações iguais, vendáveis, das empresas estatais para todos os cidadãos, permitindo então que a propriedade subseqüente se desenvolvesse através da compra e venda das ações. Rothbard propôs, em vez disso, uma solução “sindicalista”:
Seria muito melhor considerar o venerável princípio do homesteading como base do novo sistema de propriedade dessocializado. Ou, para reviver o velho slogan marxista: “todas as terras para os camponeses, todas as fábricas para os trabalhadores!” Isso estabeleceria o princípio básico lockeano de que a posse das propriedades sem donos deve ser adquirida pela “mistura do trabalho com o solo” ou com outros recursos sem dono. A dessocialização é um processo que priva o governo de suas “propriedades” ou controles existentes e que os devolve aos indivíduos privados. Num sentido, abolir a propriedade do governo dos recursos os coloca imediatamente e implicitamente numa condição em que não têm dono na qual uma apropriação anterior pode rapidamente convertê-las em propriedade privada.8
Hoppe fez uma proposta similar em relação à Alemanha Oriental, embora mais hesitante e com mais qualificações.9

É claro, o termo “sindicalista” foi usado principalmente para provocação, já que Rothbard e Hoppe foram ambos claros ao defenderem que essas propriedades “sindicalistas” fossem devolvidas aos trabalhadores e camponeses individuais como ações vendáveis e não aos membros das unidades produtivas coletivamente. O ideal, como Hoppe o expressou, seria o de que a propriedade das ações e o trabalho se separassem o mais rápido possível. Mas não há razão em princípio, como Carlton Hobbs demonstrou em relação aos comuns, por que essas unidades de produção não devessem permanecer propriedade conjunta e indivisível de suas forças de trabalho, com direitos usufrutuários de salários e pensões derivados dela. Esse sistema de forma alguma impediria necessariamente um mercado de fatores de produção. Os coletivos de trabalhadores comprariam novos equipamentos de capital no mercado; mas suas reclamações de propriedade em relação a qualquer unidade industrial de produção seriam coletivas enquanto o empreendimento mantivesse continuidade organizacional e espacial.

Embora Rothbard não tivesse feito tal qualificação em seu texto de 1969 (escrito, afinal, durante sua tentativa de coalizão com a New Left), ele e Hoppe concordaram duas décadas depois que uma tentativa deferia ser feita no sentido de restituir a propriedade estatal aos seus donos legítimos originais antes de um confisco, se registros de propriedade ainda existissem. Hoppe vinculou similares caveats à privatização “sindicalista” das indústrias estatais pós-comunistas em Democracy: The God That Failed.10 Rothbard e Hoppe concordavam que essa restituição seria mais fácil no caso da terra e na Europa Oriental (onde a expropriação da terra ocorreu apenas quarenta anos mais cedo) que na União Soviética. Rothbard enfatizou, contudo, que essa restituição seria virtualmente impossível no caso dos bens de capital e das manufaturas, uma vez que a maior parte da economia industrial foi desenvolvida sob propriedade estatal. Assim, seria melhor colocar a indústria sob controle dos trabalhadores.

Dificuldades práticas da privatização capitalista corporativista da propriedade do estado

A privatização da propriedade do estado, como ela ocorreu é apenas outra forma de subsídio capitalista de estado. Num primeiro momento, o capital transnacional promove projetos de infraestrutura nos países de Terceiro Mundo que são essenciais para retornos sobre o capital ocidental nesses países, como forma de subsidiar o investimento estrangeiro neles às expensas dos pagadores de impostos nativos. Em seguida, o débito resultante é usado para disciplinar o governo do país de forma a fazer com que ele estabeleça políticas favoráveis ao capital ocidental. Finalmente, sob o regime de “ajuste estrutural” imposto pelo FMI e pelo Banco Mundial, o país é forçado a vender seus ativos (anteriormente pagos com o suor das classes produtivas nativas) ao capital ocidental por alguns centavos de dólar. Sean Corrigan perspicazmente descreveu o fenômeno num artigo no LewRockwell.com:
Ele não sabe que toda a estratégia do FMI e do Tesouro dos EUA de dominação total é baseada na promoção de dívidas governamentais improdutivas no exterior, a taxas de juros cada vez mais usurárias, para em seguida — antes ou, mais freqüentemente hoje em dia, depois do ponto de moratória — liberar os bancos ocidentais que foram os agentes provocadores dessa Operação Suserano financeira, com novos dólares emitidos, em detrimento dos cidadãos domésticos?Ele não tem consciência de que, subseqüente ao colapso, esses Reconstrucionistas de última hora devem ser deixados arrebatar e comprar o controle proprietário dos recursos e capitais produtivos tornados ridiculamente baratos pela desvalorização ou total colapso financeiro?

Ele não entende que precisa simultaneamente precisa coagir a nação-alvo a explorar seu povo para produzir bens de exportação para pagar a nova dívida refinanciada, em adição à acumulação de um excesso de reservas em dólar como uma suposta garantia contra futuros ataques especulativos (normalmente financiados pelos mesmos bancos ocidentais através de empréstimos a seus colegas das Forças especiais nos fundos de macro-hedge) — assim assegurando que o mercantilismo reverso da Rubinomics [N.T.: Rubinomics foi o nome dado à política econômica de Bill Clinton por causa de seu Secretário do Tesouro, Robert E. Rubin] seja mantido?11
Privatizações também normalmente envolvem um fenômeno conhecido como “canalização” (tunnelling), no qual as elites com conexões políticas obtêm vantagens na aquisição de direitos às antigas propriedades estatais. Por exemplo, além do capital ocidental, outro grupo que teve fundos disponíveis para comprar antigas empresas soviéticas foi a nomenklatura do Partido, que acumulou ganhos ilícitos através de décadas de fraudes e corrupção. (Mais ou menos como o bom e velho xerife que usa o trabalho das fazendas do seu condado para colher sua plantação, mas numa escala muito maior.)

Expropriação da propriedade “privada” da classe dominante estatista

Mas a linha de argumento até aqui não se aplica somente às propriedades atualmente sob controle formal do estado, mas também a propriedades “privadas” nominais adquiridas através de meios estatistas, ou a empresas construídas com lucros derivados predominantemente da intervenção estatal. Nos comentários acima por Rothbard e Hess sobre as ocupações pelos estudantes, as reclamações de propriedade de universidades privadas financiadas ostensivamente pelo estado foram tratadas como merecedoras de desdém. Elas eram tão suscetíveis quanto as propriedades do estado de serem tratadas como “sem dono” e abertas à “apropriação original” pelos ocupantes, os estudantes e/ou os professores.

Rothbard aplicou o mesmo princípio às corporações privadas que derivavam a maior parte de suas receitas do estado. Universidades nominalmente privadas como Columbia que recebiam a maior parte de seus fundos do pagador de impostos, privadas “somente (…) no sentido mais irônico”, mereciam tanto confisco e apropriação quanto aquelas possuídas pelo estado.
Mas se é assim com a Universidade de Columbia, o que dizer da General Dynamics? O que dizer da miríade de corporações que são partes integrais do complexo militar-industrial, que não apenas conseguem metade ou às vezes virtualmente todas as suas receitas do governo, mas que também participam de assassinatos em massa? Quais são as credenciais delas à propriedade privada? Certamente menos que zero. Como impacientes lobistas por esses contratos e subsídios, como co-fundadores do estado militar, eles merecem confisco e reversão de suas propriedades ao genuíno setor privado o mais rápido possível.12
Tratar a receita bruta como o critério principal, como fez Rothbard, é provavelmente muito simples. A percentagem da margem de lucro de uma firma que adviu do estado nos anos passados é um padrão mais relevante, uma vez que o tamanho presente e a equidade de uma corporação é resultado de sua acumulação passada. No caso dos Estados Unidos, o complexo de rodoviário-automotivo e o sistema de aviação civil foram virtuais criações do estado. Grandes linhas aéreas civis foram viáveis somente por causa do gasto federal em bombardeiros pesados. C. Wright Mills apontou em The Power Elite que o valor de uma fábrica e dos equipamentos se espandiu em mais ou menos dois terços durante a Segunda Guerra Mundial, pela maior parte às custas do pagador de impostos. A maior parte da indústria de eletrônicos foi construída através do dinheiro do Pentágono aplicado em pesquisa e desenvolvimento nos anos 1960; e se os primeiros supercomputadores não tivessem sido comprados pelo governo dos Estados Unidos, é improvável que a indústria fosse capaz de alcançar o ponto de redução de custos para tornar os computadores economicamente viáveis para o setor privado. E não esqueça o papel do Pentágono na criação da infraestrutura da world wide web…

Mas e quanto aos benefícios não-monetários do estado, como a possibilidade de cobrar preços monopolísticos graças a patentes estatais? Grande parte da cartelização da indústria no fim do século XIX e do começo do século XX ocorreu pela troca de direitos de patente (e.g., entre a GE e a Westinghouse). A indústria química americana alcançou domínio global somente depois que o governo dos Estados Unidos tomou as patentes alemãs durante a Primeira Guerra Mundial e as deu para as firmas químicas de liderança. E o que dizer dos efeitos totais da taxa de acumulação graças à intervenção do estado no mercado de trabalho? (Esta última incluiria as restrições ao direito de organização, como o Railroad Labor Relations Act (Lei de Relações Trabalhistas Ferroviárias) ou o Taft-Hartley Act (lei americana que restringe o poder dos sindicatos); restrições à liberdade bancária que mantêm as taxas de juros artificialmente altas, limitam o acesso dos trabalhadores ao crédito e mantêm as dívidas como um instrumento de disciplina.) E também há o benefício coletivo da acumulação primitiva no começo do período moderno (pela qual os camponeses foram destituídos de seus direitos de propriedade tradicionais na terra e se tornaram inquilinos pela vontade do estado), o papel da força mercantilista na criação de um “mercado mundial”, os controles quase totalitários da população durante a Revolução Industrial britânica, os subsídios maciços às melhorias internas, etc.

Juntando todas essas coisas, não é preciso pensar muito para ver que virtualmente todo o grande setor manufatureiro é uma criação do estado corporativista.

A propriedade das terras e o estado

Jerome Tucille certa vez contrastou os legítimos princípios libertários de propriedade da terra com a “anarco-captura de terras” [N.T.: “anarcho-land grabism”]:
Anarquistas de livre-mercado baseiam suas teorias de propriedade privada no princípio da apropriação original: uma pessoa tem o direito a um pedaço privado de terras se misturar seu trabalho a ela e alterá-la de alguma forma. Os anarco-pegadores de terras não reconhecem tais restrições. Simplesmente escale a montanha mais alta e reclame tudo o que você puder ver. Tudo então se torna moral e sagradamente seu e ninguém mais pode colocar os pés nessas terras.13
É claro, esse padrão lockeano de trabalho de apropriação levanta todos os tipos de questões complicadoras. Quanto “trabalho” é necessário para apropriar uma dada porção de terra? Requer direta ocupação e cultivo ou a simples circunscrição (com os pés? num SUV?) e marcação dela é suficiente mistura de trabalho? Se for o último caso, há um tempo limite? Onde paramos antes de reconhecer o direito de um papa de desenhar uma linha através do mapa da América do Sul e dividi-la entre Espanha e Portugal? Por outro lado, se algum ato tangível de trabalho ou alteração da terra é requerido, pareceria que a quantidade de terra que um indivíduo poderia apropriar teria alguma relação definida com a quantidade que ele poderia pessoalmente cultivar. Neste último caso nós nos aproximamos de algo como o padrão de “ocupação e uso” mutualista de apropriação, o qual é meramente um sistema de regras de propriedade privada alternativo, não-lockeano (e o qual este autor defende).

Tibor Machan inadvertidamente apontou ao paralelo próximo entre o roubo do estado pela taxação e o roubo envolvido em muito do que se chama de “aluguel”:
Naqueles dias as classes altas, do rei a sua corte, rotineiramente se envolviam em extorsões. Eles disfarçavam isso com o falso argumento de que tudo pertence ao rei e à sua corte. Sim, monarcas e aqueles que racionalizaram a monarquia propuseram essa fantasia e venderam às pessoas que eles eram os legítimos donos “do reino”, que eles tinham um “direito divino” de nos governar. Dessa forma, quando a maior parte do país ia trabalhar na fazenda ou em qualquer outro lugar, ele tinha que pagar “aluguéis” ao monarca e à sua corte.É claro, se eu vivo em seu apartamento, eu lhe pago aluguel. É seu apartamento, afinal, então você tem direito a isso. Mas e se você conseguiu seu apartamento através da conquista, roubando de um monte de pessoas o que pertencia a elas? Foi na maioria das vezes assim que os monarcas conseguiram governar seus reinos, por conquista. Por direito, eram as pessoas que trabalhavam no reino — nas terras ou em outros locais — que na verdade tinham propriedade sobre o reino, sendo os monarcas os falsos, pretensos donos, nada mais. Mas uma vez que eles conseguiram fazer com que a maioria das pessoas indefesas acreditassem que eles possuíam o reino, o “aluguel” tinha que ser pago.14
Embora haja significativas e fundamentais diferenças entre as teorias mutualistas e lockeanas (e geoístas, por sinal) de propriedade da terra, essa não é a questão aqui. O que é realmente importante notar é o quanto concordam essas teorias rivais em relação à ilegitimidade de muito do que presentemente é chamado de propriedade “privada”. Vastas áreas de terra reclamadas pelos barões de hoje em dia são ilegítimas por qualquer padrão libertário plausível, inclusive de acordo com a regra lockeana de apropriação. No começo da era moderna na Europa, a classe dos senhores agiu através do estado para transformar sua “propriedade” de mera teoria legal feudal em direito moderno de absoluta propriedade, e no processo roubaram os camponeses, que haviam ocupado e cultivado as terras desde muito tempo, conscientes de seus direitos tradicionais à terra. Esse processo foi seguido por aluguéis extorsivos ou pela remoção em massa e cercamentos. No Novo Mundo, o estado agiu para impedir o acesso às terras vazias ou quase vazias, dizendo que elas eram de domínio “público”. Isso foi seguido por restrições ao acesso de apropriadores individuais juntamente com concessões de vastas terras a especuladores, a ferrovias, a companhias mineiras e serralheiras e a outras classes favorecidas. O resultado foi a limitação do acesso médio independente dos produtores à terra como meio de sobrevivência, para assim restringir sua gama de alternativas independentes na busca de um sustento, assim forçando-o a vender seu trabalho no mercado.

Em virtualmente toda sociedade no mundo onde poucos proprietários gigantes coexistem com um campesinato que paga aluguel pela terra em que trabalha, a situação tem suas raízes em algum ato de roubo passado pelo estado. O fenômeno teve origens na República Romana, como recontado tanto por Lívio quanto por Henry George, no qual os patrícios usavam o acesso que tinham ao estado para se apropriar das terras comuns e reduzir os plebeus ao inquilinato e à escravidão por dívidas. Como escreveu Albert Jay Nock, “a exploração econômica é impraticável até que a exploração pela terra ocorra”.15

Conclusão

Não é preciso que a direita libertária seja se apegue tanto à corporação como forma de organização ideal. Uma economia corporativista como a do padrão atual de forma alguma se segue dos princípios da não-coerção e das trocas de livre mercado. Uma sociedade de livre-mercado que admita a visão de, digamos, Colin Ward e Ivan Illich, em vez de apenas a de Tio Milton e a de John Galt, seria muito mais humanamente tolerável.

Entre não-libertários, o libertarismo é freqüentemente visto somente como uma forma de republicanismo leve em relação às leis de drogas. Em muitos casos, isso é injusto. O movimento libertário possui uma grande facção pequeno burguesa, populista, que tem suas origens em Warren e Tucker e outros individualistas que foi passada adiante pelas mãos de Nock e Mencken. E a maioria dos rothbardianos adere a princípios que significariam a destruição da maioria dos grandes negócios que existem hoje em dia.

Mas em muitos casos, a percepção é infelizmente bastante justa. Um grande segmento do movimento libertário é uma apologia glorificada daqueles presentemente no topo: dos grandes negócios contra os pequenos negócios, consumidores e trabalhadores; do agronegócio corporativista contra os fazendeiros orgânicos; das companhias petroleiras, madeireiras e mineradoras que querem acesso à terra do governo através de concessões politicamente determinadas; e dos colonos nos estados-párias do Terceiro Mundo, ou de estados anteriormente párias como Israel e Zimbábue, às expensas dos nativos miseráveis. Ou, nas palavras de Cool Hand Luke, “É, os pobrezinhos dos chefes precisam de toda ajuda que conseguirem”.

Se o libertarismo continuar a ser percebido dessa forma, como uma elaborada justificação da simpatia pelos ricos contra os pobres, nós não temos chance alguma de vitória. Mas se nós agirmos sobre os princípios da não-agressão e da não-coerção, mesmo quando esses princípios são danosos aos grandes negócios, nós teremos a base de uma coalizão genuinamente libertária de esquerda e direita que seja capaz de destruir a cidadela do estado. Eu espero ter fornecido alguns exemplos concretos de como esses princípios podem ser aplicados em resposta às questões atuais.

Notas

1 Carlton Hobbs, "Common Property in Free Market Anarchism: A Missing Link", Anti-State.com. Arquivado pela Wayback Machine.

2 Karl Hess, "Letter From Washington: Where Are The Specifics?", The Libertarian Forum, 15 de junho de 1969, p. 2. Disponível no Panarchy.org. Arquivo de reserva disponível na Wayback Machine.

3
In: Henry J. Silverman, ed. American Radical Thought: The Libertarian Tradition, Lexington Mass.: D.C. Heath and Co., 1970, p. 268.

4 Karl Hess, "The Student Revolution", The Libertarian (mais tarde renomeado The Libertarian Forum), 1 de maio de 1969, p. 2. Disponível na coletânea do Mises Institute, p. 13. Arquivo de reserva disponível na Wayback Machine.

5 Karl Hess, "Confiscation and the Homestead Principle”, The Libertarian Forum, 15 de junho de 1969, p. 3. Disponível na coletânea do Mises.org, p. 27. Arquivo de reserva disponível na Wayback Machine.

6 Mutualize! Site resgatado pela Wayback Machine.

7 "Confiscation”, p. 3.

8 Murray N. Rothbard, "How and How Not to Desocialize”. The Review of Austrian Economics, 6:1, 1992, p. 65-77. Disponível no Mises.org. Arquivo de reserva disponível na Wayback Machine.

9 Hans-Hermann-Hoppe, "De-Socialization in a United Germany", The Review of Austrian Economics, 5:2, 1991, p. 77-104. Arquivo de reserva disponível na Wayback Machine.

10 Hans-Hermann Hoppe, Democracy: The God That Failed. New Brunswick and London: Transaction Publishers, 2002, pp. 124-31.

11 Sean Corrigan, "You Can’t Say That!”, 6 de agosto de 2002, LewRockwell.com. Arquivo de reserva disponível na Wayback Machine.

12 "Confiscation", p. 3.

13 Jerome Tuccile, "Bits and Pieces", The Libertarian Forum, 1 de novembro de 1970, p. 3. Disponível na coletânea do Mises.org, p. 159. Arquivo de reserva disponível na Wayback Machine.

14 Tibor R. Machan, "What’s Wrong With Taxation?", 2002. Disponível no Mises.org. Arquivo de reserva disponível na Wayback Machine.

15 Albert J. Nock, Our Enemy, The State, capítulo 2. Capítulo arquivado pela Wayback Machine.