A política está fora de moda — com razão - David S. D'Amato

John Della Volpe, Diretor de Pesquisas Eleitorais do Instituto de Política da Universidade de Harvard, recentemente observou que “em vez de serem empoderados para permanecerem ativos na política (…) os eleitores mais jovens infelizmente se tornam mais desiludidos e desconfiados de todas as coisas advindas de Washington”. Volpe cita uma pesquisa do Instituto de Política que mostra que a confiança dos jovens em “quase todas as instituições testadas” está em níveis absurdamente baixos, o que deveria nos surpreender e entristecer.

Para Volpe, a desconfiança dos jovens na presidência, no Congresso e no governo é um problema infeliz, algo a que os políticos devem prestar atenção, encontrando alguma maneira de nos inspirar de volta ao civismo.

Como um dos jovens da geração do milênio, contudo, eu gostaria de sugerir, presumindo que a pesquisa de Volpe seja de fato representativa, que nosso cinismo em relação à política — nossa desconfiança e desgosto por políticos e pelo governo federal — é uma resposta natural e saudável ao meio em que vivemos.

Gente como Volpe, evangelizadores devotos do culto da política, não conseguem acreditar que possamos nos preocupar com o bem estar de nossas comunidades sem nos preocupar com a eleição de um candidato de direita ou esquerda para um cargo no governo. São pessoas que não aceitam que alguns veem a política como aquilo que ela é: o idioma da força coercitiva e o meio pelo qual algumas pessoas dominam as outras. Ao contrário do que afirmam as garantias de John Della Volpe e aqueles que acreditam no sistema, a política não é uma forma boa ou mesmo legítima de confrontar os “desafios fundamentais de nosso tempo”.

A política é simplesmente um grupo que impõe suas regras e preferências sobre outro através do uso da força física. Ela pode parecer mais ou menos democrática, mais ou menos liberal, mas sempre é apenas uma fachada que esconde a conquista e o uso da força.

Deve ser difícil ser um não-anarquista sincero, porque essas pessoas devem se guiar pelos seus impulsos e caprichos ao se depararem com qualquer questão, utilizando respostas e distinções arbitrárias. Ao invés de empregar o princípio da soberania individual, devem sempre recorrer à conveniência. Quando a conveniência não basta, o que sobra são seus sentimentos e onde eles os levarem.

Esse parece um meio indesejável de análise (se é que podemos chamar de análise) das questões sociais, particularmente para os vizinhos dos não-anarquistas, a quem esses padrões inconstantes e não-científicos devem ser aplicados. Ainda assim, os anarquistas não fingem que todas as questões sociais podem ser resolvidas por recurso mágico à soberania do indivíduo, mas apenas que ele deva ser nosso norte e ponto de partida.

Ao estabelecermos nossos princípios anarquistas, permanecem sem dúvida inúmeras questões, ao redor das quais os anarquistas assumem diversas posições. Por exemplo, o que é a autoridade ou a agressão? A propriedade privada é uma manifestação da liberdade da autoridade ou uma instância da autoridade? Os anarquistas apresentam respostas variadas a estas e outras questões.

Mas nossas respostas diferem daquelas dos estatistas porque, mesmo ao discordarmos, buscamos chegar a um objetivo — a maximização da liberdade para cada indivíduo, social e economicamente. O estatismo, em contraste, significa controle, dominação, agressão e exploração, mesmo em suas formas mais brandas e liberais.

Se a geração do milênio realmente rejeita o processo político, devemos encarar esse fato com a atitude oposta à de John Della Volpe. Ao invés de olharmos para nossos governantes e para os pesos mortos que escrevem leis para interesses escusos, nós devemos olhar uns para os outros. Quando trabalhamos, cooperamos e fazemos comércio, fora das regras do establishment, estamos agindo da maneira mais cívica possível.

A aversão aparente da minha geração pela política não é apatia, mas uma repulsa ativa e motivada. Estou feliz em rejeitar a política e as pesquisas e estimulo meus colegas a me acompanharem na criação de algo novo e melhor fora desse velho e frágil sistema.

A estupidez das elites - Erick Vasconcelos

Sérgio Malbergier recentemente escreveu (“É a estupidez, estúpido!“, Folha de S. Paulo, 11/09) sobre aquilo que, segundo ele, caracteriza a corrida presidencial brasileira deste ano: a ignorância do eleitorado. Malbergier acredita que os candidatos e marketeiros políticos estão tão convencidos da estupidez (Malbergier parece não diferenciar entre estupidez e ignorância) do eleitorado que apostam todas as suas fichas em propostas vazias que ignoram princípios econômicos elementares.

Malbergier está certo, é claro. Os candidatos, não só nesta campanha eleitoral como em qualquer outra em qualquer lugar do planeta, estão plenamente convencidos de que o povo não passa de uma massa de descerebrados que pode ser moldada e manipulada de acordo com seus caprichos. Mas Malgerbier vai mais além e não pretende descrever apenas como os políticos veem a situação; para ele, o povo é, sim, estúpido. Prova disso seria a impopularidade de discussões sobre “austeridade” na campanha.

Há uma certa vira-latice nesse diagnóstico, já que em países da Europa a população demonstrou forte oposição aos cortes nos gastos sociais. Deixando de lado questões sobre a relevância de programas de austeridade (afinal, subsídios corporativos são esmagadoramente maiores do que projetos assistenciais), eu pretendo focar na questão mais basilar: o povo é estúpido?

Alguns economistas tendem a utilizar o conceito de ignorância racional para descrever o comportamento do povo ao votar. Simplesmente não vale a pena para o indivíduo médio se preocupar com questões políticas sobre as quais ele não terá influência palpável. De acordo com essa teoria, o povo votaria mal porque os incentivos para que ele se informe sobre questões sociais relevantes são ruins. Os custos são grandes demais em comparação aos possíveis benefícios em eleições que envolvem de centenas de milhares a milhões de pessoas.

É claro, isso não é por acaso: a democracia representativa é desenhada para mitigar a força das opiniões que vêm de baixo. O sistema é montado de forma a perpetuar a influência da elite política e minimizar mudanças significativas. A democracia representativa apenas garante que haja uma rotatividade entre elites no poder sem violência; antes da democracia ocidental, mudanças no corpo da elite dominante requeriam muito sangue e sofrimento. Isso não significa dizer que o povo não exerça influência sobre o governo, mas implica que essa influência é muito menor do que normalmente se presume. A própria definição do que está sujeito à discussão pública ou do que são as questões sociais mais urgentes é pautada pelas opiniões da elite política.

Contudo, ignorância racional, embora válida, parece ser uma teoria limitada. A população, de maneira geral, apresenta opiniões desinformadas sobre temas políticos e econômicos não porque seja estúpida ou não veja benefícios em conhecer as questões políticas mais de perto, mas porque essas questões jamais se apresentam claramente para o público. Não é apenas “racional” para o povo não se interessar por política; é praticamente sua única opção.

A intelligentsia tende a achar que o povo é incapaz de pensar por si mesmo e que quaisquer mudanças sociais sofrerão resistência do público ignorante. Os candidatos contam com o conservadorismo reativo de grande parte da população para se elegerem. Nenhum dos que lideram as pesquisas presidenciais pretende fazer qualquer mudança relevante em questões frequentes em debates sociais atuais. Aborto, casamento homossexual e liberação das drogas não figuram em seus programas de governo. Mas isso acontece porque essas questões nunca são sujeitas a debates públicos.

É evidente que o povo atualmente vai se manifestar, por exemplo, contra a liberação das drogas; esse é o status quo. As pesquisas de opinião pública que pretendem refletir as posições médias do eleitorado são apenas um espelho do status quo. As instituições atuais existem porque contam com apoio da população. Se a população, de maneira geral, não apoiasse essas instituições, seria difícil que elas resistissem por muito tempo. Logo, dizer que o povo não apoia a liberação das drogas não diz absolutamente nada: a liberação das drogas não foi colocada na pauta da discussão pública.

A real posição da população sobre questões sociais só se apresenta após o debate público, após a disseminação de argumentos contrários e favoráveis, quando as pessoas são socialmente levadas a adotar uma posição refletida sobre os assuntos sociais. Pesquisas políticas não mostram as opiniões refletidas do eleitorado, mas retratam posições impensadas e irrefletidas, que não foram sujeitas ao escrutínio público e que não tiveram que se justificar no debate aberto.

É conveniente para a elite política e intelectual presumir que o povo seja estúpido ou inexoravelmente ignorante, porque assim esses indivíduos conseguem carta branca para continuar a tomar as decisões em nome de todos.

Mas para que o povo deixe de ser ignorante em relação às questões que afetam suas vidas, não basta lamentar. É preciso apresentar os termos do debate de maneira clara. É preciso levar sua opinião em conta.

Os intelectuais e políticos da elite provavelmente não aceitarão argumento. Talvez sejam eles os estúpidos.

Não há justiça no estado prisional - Cory Massimino

O Departamento de Correções da Flórida recentemente demitiu 32 guardas depois de anos de corrupção dentro do sistema prisional, sendo responsáveis por pelo menos quatro mortes de detentos. O sindicato dos agentes prisionais chamou a demissão em massa de “massacre da sexta-feira”. Esse é um massacre que eu apoio.

Repórteres que pesquisaram os registros penitenciários encontraram múltiplos incidentes de abuso e “usos inapropriados da força”.

Quando inspetores visitaram a Franklin Correctional Institution, descobriram um incidente de três anos atrás em que um preso de 27 anos, Randall Jordan-Aparo, implorou ao agente Rollin Suttle Austin para levá-lo ao hospital por causa de uma doença sanguínea. O agente ordenou que ele fosse “gaseado”. Jordan-Aparo morreu naquela noite.

Os inspetores corretamente notaram que a situação envolvia tratamento “sádico e regulatório” pelos guardas, mas alegam que, ao levar suas conclusões para o Inspetor-geral do Departamento de Correções da Flórida Jeffrey Beasley, ele disse que “acabaria com eles” se não parassem de mexer nesse vespeiro. Os agentes envolvidos continuam empregados, embora o Departamento de Justiça dos Estados Unidos continue a investigar a situação.

Isso faz com que eu me sinta muito melhor…

Outro incidente envolveu um detento com deficiência mental chamado Darren Rainey. Após defecar em sua cela, Darren foi preso em um box de chuveiro, levou um “jato de água quente”, provocado e abandonado pelos agentes para morrer. Testemunhas relatam que ele teria sido encontrado no box com pedaços de sua pele caindo.

Esses incidentes de pura maldade são considerados fatos isolados por aqueles que continuam a justificar o estado prisional. Quantos exemplos de abuso deplorável serão necessários para que as pessoas percebam que o problema é estrutural? Quanto sangue os agentes prisionais terão que ter nas próprias mãos até serem considerados inimigos de uma sociedade pacífica e não seus protetores?

Enquanto as vítimas são apenas nomes em um papel com que os vários burocratas estatais fingem que se importam, elas eram pessoas reais, de carne e osso, sujeitas a uma abjeta tortura nas garras do estado penitenciário. Randall Jordan-Aparo e Darren Rainey não são fatos isolados, mas exemplos de um problema institucional muito maior.

É por isso que as demissões não vão resolver nada. Os abusos do estado prisional, embora tristes, são uma consequência previsível da entrega da “justiça” ao monopólio estatal. O estado prisional é um sistema de opressão que normaliza os abusos do poder e atos de terror, deixando os detentos à mercê de agentes irresponsáveis.

A impossibilidade de responsabilizar criminalmente os agentes, como no caso de Austin, é rotineira. Não há incentivos para que o monopólio prisional mantenha o poder dos agentes em cheque. Apenas quando repórteres externos pesquisam os registros — uma raridade — o estado é forçado a agir de maneira “responsável”. Mesmo assim, a resposta é apenas um espetáculo para apaziguar o público em vez de mudanças verdadeiras. Afinal, as reais mudanças envolveriam a abdicação do poder estatal, a última coisa que os funcionários do governo permitirão.

Passaram-se três anos para que a morte de Randall Jordan-Aparo fosse conhecida e agora tudo o que conseguimos é uma “investigação” — a técnica de apaziguamento preferida do estado. Embora isso tenha uma cara de prestação de contas, uma investigação por um colega funcionário do estado não tem nada a ver com isso. Uma prestação de contas verdadeira só é possível através da dispersão do poder — e isso significa a abolição do sistema.

O estado pretende monopolizar a justiça, mas isso não é a verdade. A verdade é que o estado remove qualquer possibilidade de haver justiça.

O dia que mudou tudo - Kevin A. Carson

Quando todos se lembram de onde estavam em determinado dia, dificilmente se trata de uma boa memória. Em 11 de setembro de 2001, nós adicionamos outro dia à lista daqueles que preferiríamos esquecer. Eu estava otimista quando o despertador me acordou. Minha primeira publicação impressa, o panfleto Iron Fist Behind the Invisible Hand (em português, O punho de ferro por trás da mão invisível) acabava de ser aceito pela editora Red Lion Press. A primeira frente fria de setembro, minha época preferida do ano, havia chegado. Eu antecipava um dia de tempo agradável e refrescante. Mas meu bom humor rapidamente se dissipou.

A primeira coisa que ouvi no rádio depois de acordar foi que a primeira torre do World Trade Center havia sido atingida. Enquanto eu escutava, chegavam notícias de um avião atingindo a segunda torre. Claramente, não era acidente.

Meu primeiro pensamento foi que George W. Bush conseguiria poderes executivos que rivalizariam a Lei de Concessão de Plenos Poderes de 1933, que foi aprovada na Alemanha logo após o incêndio do Reichstag. O FBI e a comunidade de inteligência conseguiriam todos os poderes de vigilância que não conseguiram depois do bombardeio de Oklahoma City em 1995. Bush conseguiria uma carta branca para começar guerras em qualquer lugar do mundo sob o pretexto de lutar contra o “terrorismo”, assim como as administrações anteriores haviam se envolvido em guerras ininterruptas e não declaradas em nome do combate ao “comunismo” e ao “narcotráfico” em décadas anteriores. Mas daquela vez a inocência do público seria abastecida por ultraje. Bush conseguiria aprovar suas guerras com menos escrutínio que o Vietnã e todas as outras guerrinhas que foram empreendidas durante a Guerra Fria. Achei que estaria com sorte se meu cartão vermelho do Industrial Workers of the World e os círculos anarquistas com quem eu me comunicava na internet não me levassem sem acusação para um campo de detenção.

O ataque da al-Qaeda ocorreu dois anos após a atmosfera pós-Seattle, parte do surto de ativismo em rede que se iniciou com o levante zapatista de 1994, quando agências multilaterais como o G8 e a Organização Mundial do Comércio não podiam se reunir sem serem perturbadas por protestos antiglobalização. Eu achava provável que a histeria pós-11/09 fizesse com que esse radicalismo que ressurgia fosse marginalizado ou suprimido, assim como a histeria durante a Primeira Guerra Mundial havia sido usada para suprimir a maior parte da esquerda americana. Em meu emprego (num hospital de veteranos do exército), eu trabalhei para causar certa divisão entre os trabalhadores e a gerência, promovendo ressentimento e uma vontade de resistir. Temi que a onda de patriotismo após o ataque terrorista resultaria em uma atitude de “estamos todos juntos”, afogando nosso ativismo trabalhista em um mar de fitas azuis, vermelhas e brancas.

Grande parte disso tudo aconteceu. O Congresso aprovou a Lei Patriótica, a NSA expandiu suas escutas ilegais, o exército e a CIA criaram um campo de detenção em Guantánamo (e torturou os presos tanto lá como em Abu Ghraib e Baghram), Bush imediatamente iniciou uma guerra contra o Afeganistão e em 2003 usou o medo do 11/09 para aprovar sua invasão do Iraque. Até hoje, os apoiadores da nova guerra de Obama sobre o Estado Islâmico denunciam a oposição como gente com uma “mentalidade de 10 de setembro”.

A atmosfera de agitar as bandeiras e fitas amarelas nas semanas seguintes era enlouquecedora. As enfermeiras que entusiasmadamente davam fitas de lapela no trabalho me lembravam dos oficiais do Exército Vermelho. E então as manifestações antiglobalização pós-Seattle se desaceleraram até parar.

Não foram abertos campos de concentração em solo americano para cidadãos americanos e nem foi suspenso o habeas corpus, mas a maioria das expectativas se materializou de alguma forma.

Não era o fim do mundo, porém. Os últimos anos foram o momento em que ganharam notoriedade Chelsea Manning, Wikileaks e Edward Snowden. Se o movimento de Seattle arrefeceu, a Primavera Árabe, o M15 e o Occupy assumiram seu lugar em uma escala ainda maior. Longe de ter sido enterrado sob a onda de patriotismo, o ativismo trabalhista voltou com força total com os boicotes da Coalition of Immokalee Workers e as campanhas em rede dos trabalhadores do Walmart e das redes de fast food.

O estado capitalista e seu aparato de segurança deram o seu máximo depois do 11/09 e ainda assim não conseguiram nos vencer ou nos parar por muito tempo. Nós vamos enterrá-los.

Você só tinha um trabalho a fazer, ONU - Kevin A. Carson

A ONU voltou às notícias graças aos preparativos para a abertura da 69ª sessão de sua Assembleia Geral. O secretário-geral Ban Ki-moon destaca a importância da missão da ONU nesta “época de turbulências”. Talvez nós devamos analisar mais de perto qual é essa “missão”. O suposto propósito da Organização das Nações Unidas é manter a paz e a estabilidade — ou, como colocou a ex-embaixadora americana na ONU Susan Rice, “deter e punir agressões”.

Se pararmos para pensar, é um objetivo estranho. A missão da ONU é evitar agressões; contudo, ela não faz absolutamente nada para impedir o país cujas agressões são esmagadoramente maiores do que as dos outros no período pós-guerra — talvez em toda a história. Nos últimos setenta anos, os Estados Unidos invadiram mais países, derrubaram mais governos e apoiaram mais ditadores e grupos terroristas que qualquer outro país na Terra. O segundo colocado não chega nem perto.

Até mesmo “ameaças” como a al-Qaeda, o Hamas, o Estado Islâmico e o Iraque de Saddam Hussein não passaram de respostas a políticas americanas agressivas ou foram apoiadas secretamente pelos EUA e seus aliados para chegar a seus objetivos agressivos. Os atos criminosos da al-Qaeda e do Estado Islâmico atualmente resultam diretamente do apoio passado dos americanos à Irmandade Muçulmana como contrapeso ao governo de Gamal Abdel Nasser no Egito, da desestabilização do governo pacífico e relativamente progressista do Afeganistão (para forçar o envolvimento da URSS em seu próprio Vietnã), do patrocínio a terroristas kosovares na Iugoslávia nos anos 1990, do suporte a rebeldes chechenos contra o governo russo e do apoio secreto aos setores anti-Assad na Síria.

Tanto os Estados Unidos quanto a ONU afirmam que a disseminação da democracia é um de seus objetivos centrais. Contudo, os EUA derrubaram Mohammad Mossadegh no Irã e Patrice Lumumba no Congo e ativamente estimularam a onda de ditaduras militares que cobriu a América do Sul nos anos 1960 e 1970.

E apesar de propagandear seus atos criminosos como “punição de agressões” ou “disseminação da democracia”, os Estados Unidos sempre foram motivados quase exclusivamente pelo desejo de proteger a capacidade de suas corporações extrativas de saquear recursos minerais na África, petróleo na Indonésia e na Nigéria e exportar suas manufaturas exploratórias para o Terceiro Mundo.

Longe de impedir os EUA de perpetrarem esses crimes contra a humanidade, a ONU serve como laranja dos EUA contra aqueles que desafiam suas ambições.

Parafraseando a observação de Lysander Spooner sobre a Constituição, ou a ONU foi criada para permitir esses crimes pelo maior e pior agressor mundial (sendo, portanto, uma organização criminosa), ou ela é incapaz de impedi-los (sendo, portanto, inútil). A segunda alternativa é condenatória o bastante. Se a Liga das Nações é desprezada por ter sido incapaz de parar Hitler, não seria o caso de a ONU ser julgada de maneira igualmente severa por ser incapaz de impedir os EUA?

Mas eu adoto a primeira opção. A ONU foi central para a visão de Franklin Delano Roosevelt e Harry Truman de uma ordem pós-guerra encabeçada pelos EUA e seus aliados. Essa visão englobava a imposição do domínio corporativo sobre o mundo e a punição de qualquer tentativa futura de se separar dessa ordem. O que significa que a ONU é maligna e que seu propósito declarado é uma mentira.

Do ponto de vista dos críticos anti-imperialistas radicais da política americana, a retirada dos EUA seria benéfica porque tornaria mais difícil a construção de coalizões multinacionais para compartilhar os custos militares e fiscais da agressão com outras potências. Mas os Estados Unidos, por esse mesmo motivo, nunca sairão da ONU; a ONU existe somente para servir à elite corporativa que controla os EUA e seus aliados. Mesmo se os EUA saíssem da ONU, o resultado não seria — como acreditam os detratores direitistas da ONU — a purificação dos EUA da influência corrupta do Rockefeller Plaza. A corrupção é inseparável dos EUA. Sua saída simplesmente amputaria um tentáculo do polvo, mas deixaria o coração da besta em Wall Street e seu cérebro em Washington intactos.

Hora de destravar a educação online - Kevin A. Carson

Dan Friedman (“The MOOC Revolution That Wasn’t“, TechCrunch, 11 de setembro) expressa sua decepção com os cursos universitários online em comparação às suas expectativas iniciais. De acordo com ele, se consideradas as proporções de conclusão de cursos e até mesmo a visualização de aulas inteiras, “a revolução acabou”. Mas acabou por um bom motivo. O modelo prevalente de cursos online ainda não atende às necessidades daqueles a que pretende servir.

Há um forte paralelo entre a educação online e a controvérsia a respeito do Uber e do Lyft contra o sistema de praças para taxistas. Serviços convencionais de carona compartilhada oferecem certo grau de competição aos serviços de táxi antigos, mas são apenas um passo modesto na direção certa, porque ainda incorporam as mesmas características proprietárias e monopolísticas do modelo contra o qual competem. Ainda são controlados por sedes corporativas fora das cidades que servem e, por conta de aplicativos patenteados, são capazes de extrair tributos dos motoristas e dos consumidores que operam dentro de seus cercadinhos. O próximo passo é hackear o Uber e o Lyft com serviços cooperativos e abertos de compartilhamento de carona.

A educação pela internet, com ou sem fins lucrativos, é apenas uma pequena melhoria em relação a universidades tradicionais. Como Uber e Lyft, ainda está presa entre dois mundos, seguindo o modelo antigo da educação superior em vez de tentar o novo modelo open source de que precisamos.

O Coursera coordena seus cursos com “instituições parceiras” (universidades físicas), montando currículos mais ou menos tradicionais. O Udacity molda seus cursos de acordo com as demandas da “indústria de tecnologia” (isto é, departamentos de recursos humanos corporativos). Os grandes fornecedores de cursos online ainda estão presos a uma parceria pós-Segunda Guerra Mundial entre as grandes empresas, o establishment da educação superior e o estado, cujo objetivo central é o processamento de recursos humanos para atender às necessidades dos empregadores corporativos, tanto em termos de habilidades quanto em atitudes no ambiente de trabalho. Ao fornecer milhões de pessoas para suprir a demanda das empresas da Fortune 500, o sistema de educação superior simultaneamente infla os níveis mínimos requeridos de treinamento (além ds dívidas) requeridos para trabalhar, superproduz formas de trabalho vocacional mais necessárias e, assim, empurra os preços para baixo, deixando aqueles que aprendem aprendem essas habilidades com mínimo poder de barganha em relação aos grandes empregadores.

Uma educação genuinamente livre precisa parar de tentar encher garrafas velhas com novos vinhos, tanto no estabelecimento de materiais gratuitos para cursos para se encaixarem no modelo convencional das universidades ou na montagem de currículos para atenderem às necessidades de empregadores corporativos. Esses empregadores e seus departamentos de recursos humanos são parte de uma economia em decadência. Alguns podem sobreviver por décadas, enquanto o estado falido ainda consegue fornecer subsídios e proteções regulatórias suficientes para sobreviver. Mas são obsoletos e esperam a própria morte. São um setor cada vez menor do total da economia.

O futuro do trabalho é o autoemprego, os arranjos trabalhistas cooperativos em pequenas oficinas (por exemplo, micromanufaturas em garagens, hackerspaces e operações de permacultura), produção colaborativa de informação e trabalhos orientados a projetos. E nos projetos em que as habilidades e o capital humano são a fonte principal de geração de valor e as ferramentas físicas forem baratas — um quinhão cada vez maior da economia —, os trabalhadores existentes em situação de precariedade provavelmente criarão novas versões cooperativas das agências capitalistas de trabalho temporário que já existem, sindicatos de freelancers, guildas que proveem seguros, certificações e que negociam com os empregadores.

Precisamos de um novo modelo de educação baseado em credenciais voluntárias, ad hoc e cumulativas fora do sistema estatal, ditado pelas necessidades de pequenas oficinas e trabalhadores em rede que dominarão a nova economia.

E, é claro, os responsáveis pela educação open source precisam começar a hackear materiais proprietários, acabando com os sistemas de gestão de direitos digitais em vídeos e livros.

O que temos agora é um sistema universitário em decadência, criado por um estado decadente para servir às necessidades de uma decadente economia corporativa. Deixe que os mortos sepultem os seus próprios mortos.

A conquista do Reino Unido pela Escócia - Joel Schlosberg

A escolha do “não” no referendo que perguntava aos escoceses se a Escócia deveria se tornar um país independente é uma vitória pírrica para o Reino Unido.

O fato que a campanha do “sim” foi capaz de angariar 44,7% dos votos abala um consenso de 300 anos e a devolução de poder político à Escócia já é dada como certa. Esse quase empate é bem mais problemático para o sistema político existente que pretende manter sua legitimidade do que para um novo que tenta se estabelecer. E as preocupações anteriores ao referendo permanecem.

Com o ônus da prova deslocado, as ideias do contrato social em favor da existência dos estados atuais foram desenterradas. Isso levou a um argumento inacreditável contra a independência da Catalunha exposto pelo Ministro do Extrior da Espanha José Manuel García-Margallo: “Cada espanhol é dono de todos os centímetros quadrados do país”. A formação da união entre Escócia e Inglaterra através de um acordo do parlamento escocês era frequentemente usada como fonte de legitimidade três séculos depois, sublinhando quão raramente os territórios políticos não são simplesmente resultados de conquistas militares.

Uma vez que um dos principais pontos da campanha do “sim” vinham do desejo de retirar as armas nucleares da Escócia, mesmo com as questões práticas de organização militar não resolvidas, foi evitada a objeção comum ao separatismo: “E quanto à defesa?”. Os contrários à independência até mesmo apresentaram a perspectiva de uma Escócia independente como se fosse uma coisa ruim.

Grande parte dos comentários enfatizava a incerteza econômica em caso de independência. Críticos como Paul Krugman levantaram o ponto válido de que a Escócia atualmente depende muito do sistema financeiro mundial e sua instabilidade faria com que a independência política reduzisse sua capacidade de absorver os danos advindos de crises econômicas.

A questão dividiu a elite econômica. A British Petroleum previsivelmente apoiou o “não” e os setores mais globais favoreceram o “sim”. Enquanto isso, a propriedade da maior parte das terras da Escócia permanece nas mãos da elite, metade sob controle de apenas 432 famílias. As propriedades individuais já estão se deslocando das famílias aristocráticas e passando para os especuladores globais.

A economia escocesa, com a diminuição de suas receitas advindas do gás e do petróleo, foi muito afetada pela desindustrialização. Mas com a disseminação da tecnologia pós-industrial, uma nova base econômica se torna cada vez mais viável. Serviços básicos podem ser descolados dos limites geográficos; o referendo recebeu muita atenção por conta dos simples efeitos da competição entre o Reino Unido e a zona do euro. A concorrência total de moedas iria muito além da escolha entre a libra e o euro. A descentralização até o ponto do sistema de clãs escocês passaria a ser uma realidade cotidiana em vez de uma memória romântica.

O sol está se pondo para o estado imperial.

Quantos mortos pela PM são o bastante? - Valdenor Júnior

Nesta quinta-feira (18/09), o camelô Carlos Augusto Muniz Braga foi morto por um policial militar na Lapa, zona oeste de São Paulo. O vídeo da tragédia, viralizado, mostra o momento em que o policial atira à queima-roupa. Carlos se afastou, mas caiu logo a seguir, ensanguentado.

Qual foi o crime de Carlos? Testemunhas relatam que um ambulante teve toda sua mercadoria – DVDs – apreendida pela polícia e, ao reagir com indignação, terminou rendido no chão pelo policial depois de uma briga física. Uma pequena multidão revoltada se aglomerou e protestava. “Não bate nele!” “Tá cheio de ladrão por aí, para que bater assim num trabalhador?” Um dos policiais sacou uma pistola carregada e a colocou na mira de civis desarmados. Carlos estava entre os que protestavam. Quando o policial se preparava para usar novamente o spray de pimenta, Carlos tentou impedi-lo. O policial atirou em sua cabeça.

Carlos deixa uma esposa, Cláudia Silva Lopes, e 3 filhos – o mais novo com 4 anos e o mais velho, 12. Cláudia relata já ter sido agredida grávida em abordagem passada da polícia, denunciando o quão comum é o abuso da força policial no cotidiano dos trabalhadores ambulantes.

O caso de Carlos Augusto foi um crime e uma tragédia. Mas não se engane com quem afirma que isso é apenas um caso isolado. O abuso de poder policial e o tratamento do ambulante como caso de polícia é uma situação sistêmica no Brasil.

O trabalhador ambulante é perseguido e acossado por levar o livre comércio às ruas. Inúmeros consumidores encontram, todos os dias, no trabalho e investimento deles, uma alternativa para satisfazer sua demanda por determinados bens e serviços. Trata-se de uma economia entre pessoas físicas, que acompanha as variações da demanda com adaptabilidade e flexibilidade. A vida de todos melhora com essa rede de trocas que, anualmente, movimenta centenas de bilhões de reais.

Contudo, para que este resultado seja obtido, grande parte do cotidiano dos trabalhadores ambulantes é dispendido em maneiras de contornar o estado, de evitar a repressão por seus agentes ou, pelo menos, tentar evitar que os investimentos e o fruto de seu trabalho sejam tomados. A polícia geralmente reprime ambulantes e camelôs sob várias justificativas: ausência de autorização, revogações discricionárias, a defesa da propriedade intelectual, ou o não pagamento de impostos.

O que mostra como o estado brasileiro é uma instituição contrária ao trabalhador e ao pobre.

Em um país cujo governo orgulha-se de uma detalhada regulação trabalhista para proteger o trabalhador, o fato é que esses trabalhadores na informalidade são vulneráveis ao aparato de repressão governamental, que confisca o fruto de seu trabalho ou os agride fisicamente, podendo chegar, como no caso de Carlos Augusto, à morte violenta. As autorizações de trabalho ambulante são concedidas a título precário pelas prefeituras, de modo que eles são vulneráveis a serem, repentinamente, proibidos de exercer seu trabalho.

Em um país cujo governo afirma recolher muitos tributos para satisfazer as necessidades do povo em termos de educação, saúde e bem-estar para alcançar uma sociedade igualitária, já está demonstrado que a carga tributária não somente onera proporcionalmente mais os pobres do que os ricos, como também pune principalmente mulheres e negros em relação aos homens e brancos. Diante disso, o comércio informal ajuda a aliviar parte dessa carga suportada pelos mais pobres e por grupos minoritários, mas o governo não aceita isso.

Aqui, trabalhadores como Carlos são frequentemente perseguidos, enquanto megacorporações como a FIFA se locupletam com privilégios estatais, como escrevidurante a Copa do Mundo.

Não bastassem todas essas injustiças, é muito provável que a morte de Carlos tivesse sido registrada como “auto de resistência” e não fosse investigada caso ninguém tivesse filmado o ocorrido. O auto de resistência é pouco mais que uma licença para matar. O registro da “resistência seguida de morte” cria uma presunção em favor da versão dos fatos do policial e o arquivamento de processos desse tipo é frequente. Não fosse a gravação e a multidão, Carlos teria virado mais uma estatística de auto de resistência.

A morte de Carlos Augusto não pode ser esquecida. Nenhum dos abusos do estado pode. Devemos a ele, não somente o julgamento do policial que atirou nele, mas também o fim do sistema perverso que trata o livre comércio e os trabalhadores brasileiros como um caso de polícia.

A anarquia como meio-termo - David S. D'Amato

Meu colega de Centro por uma Sociedade sem Estado Roderick Long certa vez descreveu a anarquia como meio-termo, não como um tipo de fanatismo ou extremismo, mas um ponto “entre obrigar o que deveria ser opcional e proibir o que deveria ser opcional”. O argumento de Long não é só um enfoque diferente que tenta vender o anarquismo para uma audiência indisposta a considerar seus argumentos; trata-se, na verdade, de um insight importante sobre o que os anarquistas de fato desejam para o futuro, sugerindo a tolerância à experimentação e ao pluralismo que são centrais à nossa filosofia.

O anarquismo é mais um método que a vindicação de um resultado particular. Assim, uma condição de anarquia — se ela chegar a existir — será aquela que se mostrar coerente com a metodologia prescrita pelo o anarquismo. Como escreve Donald Rooum, “o ideal do anarquismo é o de uma sociedade em que todos os indivíduos possam fazer o que escolherem, a não ser interferir com a capacidade de os outros fazerem o que escolherem. Esse ideal é chamado anarquia, que vem do grego anarchia, o que significa a ausência de governo”. Ao considerarmos o que os anarquistas já afirmaram a respeito de si mesmos e suas ideias, parecem dúbias as caricaturas dos anarquistas que os pintam como agentes perigosos e fanáticos do caos ou como utópicos sonhadores.

É o estatismo que devemos considerar como uma posição filosoficamente extrema, porque todas as suas várias formas propõem a noção patentemente absurda e contraintuitiva de que algumas pessoas devem ter o direito de governar as outras. É difícil imaginar que uma ideia tão frágil possa ser a posição padrão na filosofia política, tanto entre amadores quanto entre profissionais — superstições e mitos mantêm a existência do estado, em contraposição à racionalidade e argumentação. Essas superstições no passado envolviam noções já abandonadas como o direito divino dos reis e atualmente englobam ideias igualmente desprezíveis, como por exemplo a de que as “democracias” são governos “do povo, pelo povo e para o povo”. Os argumentos das classes dominantes e das autoridades nunca mereceram o benefício da dúvida, é claro, mas mesmo se pudéssemos confiar em suas ideias, seu histórico acumulado de mortes, exploração e pobreza já é monumental.

Em vez de pensarem no anarquismo como uma cura para uma sociedade doente, os anarquistas veem nosso movimento como uma ferramenta com a qual avaliar os fenômenos sociais. Em concorrência com as narrativas das classes dominantes, ele nos oferece formas novas e diferentes de pensar em como nos relacionamos enquanto seres humanos.

Ao discutir as relações entre várias correntes sociais de sua época, o mutualista William Batchelder Greene apontou uma verdade importante, observando que todas eram ao mesmo tempo verdadeiras e falsas — “falsas como sistemas parciais e exclusivos”, embora “verdadeiras em suas relações mútuas”. O trabalho de Greene enfatizava o equilíbrio e a reciprocidade, buscando o meio termo, tanto para evitar o “individualismo desequilibrado pelo socialismo e o socialismo desequilibrado pelo individualismo”. O princípio guia do anarquismo de mercado, a lei da igual liberdade, tenta chegar nesse ponto — o equilíbrio que permita que o indivíduo viva em plena liberdade e preserve a comunidade.

Os libertários atualmente compreendem incorretamente a relação entre a liberdade e a igualdade e tratam os dois conceitos como incompatíveis. Libertários como William Greene entendiam que os dois se complementam, quando entendidos adequadamente. Não pode haver liberdade real sem igualdade e igualdade real sem liberdade. Por definição, o estado é inimigo de ambos; ele torna alguns “mais iguais que outros”, destruindo tanto a liberdade quanto a igualdade. Assim, o inimigo do estado — o anarquista — é o defensor da liberdade e da igualdade, do meio termo que, através da concorrência e da cooperação, conecta os interesses de todos de forma harmoniosa.

Barack Obama: terrorista - Grant A. Mincy

A National Public Radio (NPR) começou seu programa Week in Politics de 12 de setembrocom uma análise do discurso do presidente dos EUA Barack Obama sobre o Estado Islâmico (ISIS). Vários jornalistas e comentaristas destrincharam o discurso de Obama — se teria sido forte o bastante, debateram suas intenções, perguntaram quem era o ISIS. Logo a seguir, percebi que o Estados Unidos bombardeiam o Iraque, de alguma maneira, desde que eu tinha 6 anos de idade — eu sou um homem de 30 anos. Essa tradição trágica, agora com já um quarto de século de duração, continua com o atual comandante em chefe, que possui um Prêmio Nobel da Paz.

Por todo esse tempo os Estados Unidos empreendem planos de engenharia nacional e atos de assassinato em massa no território árabe. Em seu discurso, Obama afirmava: “Nosso objetivo é claro: atacaremos e destruiremos o ISIS através de uma estratégia abrangente e sustentada de contraterrorismo”. A próxima grande guerra dos drones chegou — e certamente matará ainda mais inocentes. O governo dos Estados Unidos já é responsável pelas mortes de centenas de milhares na região, com ainda mais pessoas desabrigadas e propriedades destruídas. Os novos ataques não se limitam ao Iraque. Bombas também serão jogadas na Síria, apesar dos protestos nacionais contra os ataques ao regime de Bashar al-Assad. Eles conseguiram a guerra que tanto queriam.

O ISIS é um regime aterrorizante. O grupo subjuga e estupra mulheres, mata crianças e decapita prisioneiros. Mas mais intervencionismo não é a solução. Essa nova campanha militar exacerbará seu poder, não o restringirá.

Um vídeo terrível do Huffington Post mostra um bebê sírio preso em um prédio bombardeado. A câmera foca em um grupo de trabalhadores de resgate cavando freneticamente os escombros para resgatar a criança,. Seu grito é distinguível do barulho da multidão. Ao final, o resgate consegue salvar a criança. O som de alegria das pessoas é também de alívio.

Os ataques de drones ordenados por Barack Obama recriarão essa situação todos os dias, repetidamente.

Ataques com drones são atos de terror. A campanha contra o terrorismo, em si, é uma campanha de terror sem fim. Os Estados Unidos são um país perpetuamente em estado de guerra — o maior agente de repressão do mundo. Com cada bomba, o mundo se torna menos seguro. Com cada bomba, os Estados Unidos e todos aqueles que vivem dentro de suas fronteiras, se tornam mais sozinhos e isolados no mundo.

Ataques militares atingem os objetivos de curto prazo dos defensores das guerras, mas a liberdade é uma estratégia de longo prazo. Onde há mercados há paz e onde há paz há liberdade. Quanto mais liberdade houver no mundo, por definição, haverá menos regimes opressivos. Eu não desejo a existência do ISIS, mas a morte de dezenas de milhares não é a resposta — é a própria mentalidade imperialista que criou esse regime violento. O estado-nação, com essas ações violentas, é um regime opressivo — merece também desaparecer em prol da liberdade.

A controvérsia do Burger King: Uma defesa do regicídio - Kevin A. Carson

[O título deste artigo é um jogo de palavras com o nome da rede Burger King e com o regicídio, que significa o assassinato do rei (isto é, “king”).]

O anúncio da compra da rede de fast food canadense Tim Hortons pelo Burger King e os novos planos da empresa de se mudar para o Canadá para pagar menos impostos corporativos foram seguidos pelos previsíveis protestos dos social-democratas, ultrajados pela falta de patriotismo do Burger King. Os críticos afirmam que não é “patriótico” tirar proveito dos benefícios fornecidos pelos pagadores de impostos nos EUA e então fugir do pagamento de impostos para financiar os tais benefícios.

O que esperavam? Não existem corporações “patriotas”. Governos são ferramentas extrativas formadas por corporações em benefícios delas próprias. Governos servem para beneficiar agentes econômicos privilegiados às custas dos pagadores de impostos. A tendência central do capitalismo corporativo ao longo dos últimos 150 anos tem sido a socialização dos custos operacionais e a privatização dos lucros. Embora alguns democratas gostem de falar de “bilionários patriotas” como Warren Buffett, os bilionários são só patriotas — isto é, mantêm a fachada de lealdade ao governo — quando isso é do seu interesse. Os investimentos de Buffet, como outras empreitadas corporativas, dependem totalmente de subsídios governamentais a seus custos operacionais e da exploração dos consumidores através de monopólios que, juntos, são muito mais significativos do que qualquer imposto que ele paga ou defenda o pagamento.

Além disso, o imposto de renda corporativo — apesar de seu nome sugerir que prejudica corporações — não é tão “progressista” assim. Eu provavelmente odeio as corporações tanto quanto qualquer outra pessoa e provavelmente mais que a maioria e é por isso que eu afirmo que a função principal do imposto de renda corporativo é aumentar a concentração de poder, não reduzi-la. Deduções de impostos pontuais e créditos tributários, restituíveis ou não, significam que muitas corporações que empreendem em atividades favorecidas (como a produção com uso intensivo de capital de alta tecnologia e grandes fusões e aquisições) pagam poucos impostos ou nenhum. Como resultado de uma longa luta entre as facções Yankee e Cowboy do capital americano, a última (que concentra indústrias de serviços de baixos salários e aplicação intensiva de capital como as redes de fast food) paga o grosso dos impostos de renda corporativos e são os maiores defensores de sua diminuição. Além disso, as indústrias Yankee tendem a ser oligopólios em que as grandes empresas podem se juntar para passar os custos dos impostos aos consumidores através dos preços administrados, enquanto as indústrias Cowboy têm maior probabilidade de absorver esses custos.

Se queremos atacar o Burger King com base nos privilégios, ir para o Canadá para escapar dos impostos é um problema menor em comparação a coisas como seu uso da lei de marcas registradas, taxas de franquia e todos os acordos de fornecimento exclusivos que colocam os donos de franquias locais numa posição na qual o trabalho é literalmente a única coisa disponível para ser cortada. A maneira como as corporações tratam suas franquias é muito parecida com o jeito que o Walmart trata seus fornecedores.

Como afirmou Tom Knapp (o diretor de mídia do C4SS), os beneficiários do privilégio estatal sempre procurarão, como qualquer um, quem queira oferecer a eles os melhores privilégios. Um dos efeitos colaterais da globalização é que se torna mais fácil fazer essa busca — simplesmente coloque sua sede em um país com os melhores impostos, sabendo que todas as suas “propriedades intelectuais” e outros acordos ainda serão protegidos por outros estados, graças aos “acordos comerciais”.

A única forma de lutar contra o Burger King é sendo mais ágil que ele. Se a sede do BK pode mudar de país, os movimentos de solidariedade trabalhista também podem. Os trabalhadores da IWW podem fazer ações em restaurantes do Burger King no Canadá e também nos EUA. A nível local, podemos construir contrainstituições, como restaurantes de baixo custo caseiros e a entrega de comida preparada em casa, combatendo barreiras de entrada como regulamentações de zoneamento e licenciamento que dão aos restaurantes estabelecidos uma vantagem artificial. Assim, damos às pessoas comuns a oportunidade de transformar seu trabalho diretamente em renda para subsistência fora do sistema assalariado, reduzindo sua dependência dos baixos salários dos fast foods com suas péssimas condições de trabalho.

A raiz do problema é o privilégio — não os agentes econômicos que tiram a maior vantagem possível dele.

A situação do trabalhador na Argentina: Uma perspectiva anarquista - Horácio Langlois

O artigo a seguir foi escrito originalmente em espanhol por Horácio Langlois no Mutualismo.org em 6 de junho de 2015. Esta versão se baseia tanto no original quanto na tradução para o inglês feita por Carlos Clemente.
Logo depois da crise econômica por que o país passou há mais de 10 anos, que chegou a seu apogeu em 2001, a Argentina se recuperou e entrou em um período de prosperidade relativa devido às condições do comércio exterior. Contudo, a situação do trabalhador argentino médio permanece a mesma há centenas de anos: seu acesso aos meios de produção, ao capital, ainda é restrito pela ação estatal.

1) Graças ao que já se configura como uma recessão incipiente, a situação econômica do país se deteriora rapidamente. 75% dos trabalhadores argentinos ganham menos que 6.500 pesos por mês (US$ 590), enquanto metade dos empregados ganham menos que 4.040 pesos (US$ 367), ou seja, pouco mais que o salário mínimo de 3.600 pesos (US$ 327). Os 25% que menos ganham recebem menos que 2.500 pesos por mês (US$ 227), a taxa de emprego informal já chegou a 33,5% e 1,2 milhão de pessoas estão desempregadas. A renda já muito baixa das pessoas ainda é erodida pela inflação galopante e pelos altos impostos. 1

Metade dos trabalhadores que ganham menos e consomem a maior parte de sua renda pagam um imposto sobre valor agregado (IVA) de 21%. Essa é uma alíquota extremamente regressiva, já que um trabalhador com um salário de 3.600 pesos, que consome a maior parte do seu dinheiro, paga impostos que representam mais de um quinto dos seus rendimentos, enquanto alguém com um salário de 10.000 pesos — se presumirmos uma paridade dos níveis de consumo — paga apenas 7,5% de sua renda em impostos. Além disso, a inação do governo para atualizar as alíquotas de impostos já erodiu os salários de trabalhadores mais bem pagos: um trabalhador da construção civil que ganha 15.000 pesos (US$ 1.363) ou mais paga mais de 40% de sua renda para o estado.

Assim, a Argentina está passando a ser o país em que o estado tem a maior influência sobre a economia na região e um dos países do mundo em que os empregados pagam mais impostos. 2 Devido aos impostos ultrapassados aplicados aos trabalhadores que ganham salários decentes, o IVA e o imposto de renda são os maiores contribuintes aos cofres do estado em termos nominais, representando uma parcela maior do que aquela paga por grandes produtores de soja e combustíveis. 3

2) O pior de tudo é que o trabalhador assalariado argentino tem menos alternativas de emancipação e independência atualmente do que nunca. Mesmo se conseguisse poupar e se proteger dos efeitos da inflação, ele teria que enfrentar barreiras intransponíveis de entrada nos mercados, devido principalmente a leis nacionais e regulamentações municipais para a abertura de novos negócios. Essas restrições elevam os custos iniciais para qualquer pequeno negócio para acima de 100.000 pesos (mais de US$ 9.000). Uma vez que é extremamente difícil para os trabalhadores driblarem os efeitos da inflação, o investimento com a poupança de seus salários é praticamente impossível.

O crédito é virtualmente inacessível. Os bancos cobram taxas de juros de cerca de 70% e não emprestam menos de 120.000 pesos para empresas pequenas ou médias. Além disso, os bancos oferecem cerca de 18% anualmente sobre os depósitos aos poupadores, uma porcentagem irrisória quando comparada às taxas cobradas dos consumidores em empréstimos ao consumidor e cartões de crédito. Os lucros que os bancos consequem com seu monopólio sobre o crédito não têm paralelo em outros setores da economia argentina. E com a última desvalorização em janeiro deste ano, seus lucros cresceram ainda mais. Na verdade, pode-se dizer que, além do próprio governo, os bancos foram os únicos beneficiários da desvalorização. Todos os outros setores sofreram grandes perdas de poder de compra. Durante o primeiro trimestre de 2014, a economia argentina não cresceu e os bancos mesmo assim registraram um aumento de 300% em seus rendimentos em comparação ao mesmo período de 2013. 4

3) Sendo impossível alcançar a independência financeira através da poupança ou do crédito, o que resta aos trabalhadores médios é fugir para ativos que os permitam ao menos proteger o valor de seu pequeno capital da inflação. Isso costumava ser feito principalmente através da compra de dólares americanos ou de outras moedas estrageiras, mas o estado, em um esforço para cercar recursos em benefício de sua rede clientelista, impôs um rígido controle de compras de moeda estrangeira em 2011. O sistema era tão rígido nos primeiros estágios de sua implementação que ele estimulou o surgimento de um forte mercado negro de moedas. Ele só foi tornado um pouco mais flexível em janeiro de 2014 e para benefício de alguns poucos privilegiados: apenas aqueles que ganham 7.200 pesos por mês (US$ 654) — o equivalente a dois salários mínimos — ou mais podem adquirir moeda estrangeira e, a partir desse ponto, a permissão para compras em moedas estrangeiras cresce de forma concomitante com o nível de renda. É difícil pensar em um sistema mais regressivo que esse para racionar um recurso escasso. 5

Em outras palavras, mais de 75% dos trabalhadores argentinos estão fora do mercado cambial, fazendo com que se torne extremamente difícil se proteger da inflação do peso. A fuga para outros ativos, como bens duráveis como carros — eu não levo imóveis em consideração porque já estão inacessíveis à maioria da população há decadas —, tem sido enorme e, juntamente com as compras brasileiras, é o principal fator de compensação das demissões e das reduções de operação por parte das grandes montadoras de carros devudio ao crescimento econômico mais lento. Em suma, o assalariado argentino não tem escolha a não ser trabalhar para outra pessoa por um salário miserável que rapidamente se evapora devido à inflação — isso se a incipiente recessão não os levar direto para o desemprego.

4) Com a crise de 2001, o espírito popular tinha em mente o slogan “que saiam todos”, um reflexo claro da perda de confiança na classe política. A proliferação de assembleias de bairro, fábricas ocupadas e gerenciadas pelos trabalhadores e organizações populares sem líderes políticos visíveis eram a norma até que o estado policial de Eduardo Duhalde abriu caminho, através da repressão e dos ajustes econômicos, ao primeiro governo de Néstor Kirchner em 2003. Hoje, apesar de as estatísticas de pobreza não serem mais tão dramáticas, o espírito do povo argentino é parecido, mas definitivamente não está maduro o bastante.

Estamos chegando a um ponto em que a legitimidade da democracia representativa está num ponto baixo histórico: as pessoas comuns parecem estar percebendo que o espetáculo político serve para manter o bem estar da classe política e que, novamente, a história vai seguir o mesmo curso que já segue há décadas. Essa percepção é ainda mais disseminada porque os candidatos que lideram as pesquisas presidenciais da eleição de 2015 são todos fabricados pela facção kirchinerista/duhaldista/menemista. Até mesmo o setor “direitista” liderado por Mauricio Macri já se aproximou do governo atual.

Por outro lado, a popularidade da esquerda estatista tem crescido consideravelmente nos últimos anos, especialmente em algumas das maiores associações comerciais do país e tem ganhado várias cadeiras legislativas. O trabalhador médio não é mais persuadido pelo peronismo, que se transformou no que o radicalismo se tornou na primeira metade do século 20 quando chegou ao poder: um movimento puramente conservador. 6 Contudo, apesar dos avanços das alternativas ao peronismo hegemônico serem um desenvolvimento positivo, ainda se trata da mesma esquerda autoritária de sempre. Suas propostas são, a não ser pela retórica de “assembleias” e “democracia”, mais centralização, mais poder para o estado e mais impostos para o produtor.

5) Penso que a a Argentina precise de um movimento de esquerda que verdadeiramente defenda a emancipação do produtor, pela eliminação dos privilégios na atividade bancária, nas propriedades fundiárias e na indústria e que não dependa do peso do estado sobre os ombros dos trabalhadores e empreendedores — uma esquerda que deixe todas as decisões políticas e econômicas nas mãos dos cidadãos. Um movimento libertário. Um movimento que não parta das altitudes liberais clássicas, que, de qualquer maneira, não tentariam se aproximar dos trabalhadores para mais do que estimulá-los a ler Ludwig von Mises e glorificar Juan Bautista Alberdi. Há um grande abismo cultural entre esse racionalismo herdado do século 18 e a herança cultural argentina. A mesma distância que existe para com as fgras de Marx e Trotsky que a esquerda pretende impor.

A mentalidade argentina é fundamentalmente libertária por motivos históricos, culturais e idiossincráticos e é com esse fato que temos que trabalhar.

Notas:

1 “El 75% de la gente ocupada gana menos de $ 6.500 mensuales”, Clarín, 26/03/2014.

2 Fernando Gutiérrez, “Cristina, “víctima” de la curva de Laffer: el Gobierno, casi sin margen para subir impuestos y mejorar la caja”.

3 Arrecadação – Serie Anual 2014, AFIP. Um argumento frequentemente utilizado contra essa crítica da depredação estatista é que o dinheiro coletado “retorna” ao povo na forma de serviços públicos ou sociais, como a Assistência Universal por Filho (AUF) ou serviços educacionais. É importante notar que a AUF é meramente um remédio superficial que pretende conter os impulsos destrutivos do lumpenproletariado (que todos conhecemos bem depois dos episódios de 2001) e que, apesar do aumento dos gastos na educação pública de 4% para 6,2% do PIB, a matrícula de alunos em escolas particulares cresceu sete vezes mais que em escolas públicas devido à decadência contínua de sua qualidade, que não oferece qualquer esperança para o futuro dos alunos e mantém os professores em condições de trabalho absolutamente precárias. Novamente, os trabalhadores sofrem pelos dois lados: sustentam a educação pública por meio dos impostos e fazem um esforço hercúleo para pagar pela educação de seus filhos.

4 Nicolás Bondarovsky, “Economía: la extraordinaria ganancia de los bancos”. Isso não é nada novo. Vários pensadores já observaram a necessidade de que o trabalhador tenha acesso ao crédito para sua emancipação, desde Proudhon, William Greene, Benjamin Tucker e Silvio Gesell, até Kevin Carson nos dias atuais, entre outros.

5 “La AFIP anunció la fórmula con que se calculará la venta de dólares para ahorro”, Infobae, 27/01/2014.

6 “La izquierda por la izquierda: Jorge Altamira – Partido Obrero – FIT”, La Barraca, 19/05/2014.

Elezioni e Ideologia Tecnocratica - Erick Vasconcelos

Chi vota per politici come il candidato alla presidenza brasiliana Aecio Neves, così come molti dei simpatizzanti del suo partito (Partito Socialdemocratico Brasiliano, Psdb), spesso va in confusione quando scopre che idee come “efficienza” nel settore pubblico, “cura choc”, e “professionalità” di governo non attirano larghe fette della popolazione. Si tratta di un’idea moderatamente diffusa, appoggiata anche nel governo dello stato di Pernambuco (più come programma elettorale che come azione) da Eduardo Campos, morto il dodici agosto scorso. È l’idea secondo cui c’è, o almeno dovrebbe esserci, una separazione vitale tra la politica e l’amministrazione pubblica; tra l’ideologia e l’efficienza. Ma l’idea della professionalizzazione della politica, che consiste nel mettere i “tecnici” al governo per “gestire” la cosa pubblica come se fosse una normale organizzazione della società civile, è di per sé profondamente ideologica.

È neanche una delle ideologie più recenti: Thorstein Veblen parlava di una tecnocrazia formata da ingegneri già negli anni venti. Veblen, nel suo famoso The Engineers and the Price System parla degli ingegneri (i “tecnici”) come di una classe di persone in grado di promuovere i principi della “gestione scientifica” rivolta alla produzione, opposti ad un sistema di mercato in cui i prezzi fungono da segnale. Veblen non vedeva niente di strano in un’organizzazione corporativa, che lui voleva far assurgere a modello universale e fondamento della società, eliminando le limitazioni tecniche di quelli che lui chiamava “valori industriali”. A loro volta, questi ultimi erano dipendevano dall’efficienza produttiva e non avevano niente a che vedere con gli incentivi del mercato; anzi, vi si opponevano.

Veblen promosse le sue idee riguardo l’industria e la tecnologia come punto di partenza di quella società basata su una produzione di massa da lui immaginata. Questa società, e i suoi valori, avrebbe dovuto far nascere, tramite i lavoratori dell’industria, una nuova forma di democrazia, gestita in maniera innovativa in modo da promuovere l’efficienza, la conoscenza tecnica e l’amministrazione della cosa pubblica. Ovvero una macchina perfettamente calibrata per il dominio e il controllo della società.

Questo ideale distopico riuscì a trovare adepti. Nel corso del ventesimo subì poche modifiche, perlopiù ad opera di progressisti come Joseph Schumpeter e John Kenneth Galbraith. Oggi ne sentiamo parlare soprattutto per bocca dei politici, che pensano di parlare con la voce dell’innovazione quando sostengono la necessità di mettere specialisti in posizioni di governo. È anche una comoda ideologia per un gran numero di burocrati perché non mette in dubbio l’esistenza di un dato incarico di governo, ma semplicemente si chiede chi dovrebbe ricoprirlo. La questione non è se un governo è necessario o meno, ma chi andrà a governare. Chi vorremmo sul Trono di Ferro se non uno “specialista”? Qualcuno che non si lasci trascinare da passioni politico-ideologiche, ma da quei “valori industriali” vagheggiati da Veblen. Qualcuno che olii gli ingranaggi di quel grande macchinario che è la società.

Certo sono tutte sciocchezze, perché quando parliamo di politica parliamo di ideologia, di priorità, della scelta di un obiettivo collettivo piuttosto che di un altro. Ma non ci sono fini sociali, a meno che non si consideri la somma dei singoli obiettivi individuali in senso puramente metaforico. Che poi è la ragione per cui non è possibile affidare la gestione della cosa pubblica al controllo degli esperti, perché la definizione stessa di “gestione della cosa pubblica” è una questione ideologica soggetta a negoziati politici e opposizioni.

Non è possibile rimuovere l’ideologia dal governo perché il governo stesso è un’ideologia: l’ideologia del potere, del controllo e della soppressione della dissidenza. L’ideologia della conformità, della dimensione macro-sociale, della società intesa come astrazione, mai riconducibile alle sue componenti individuali.

Governare, lungi dall’essere un’attività senza ideologie e programmi, consiste nel cucire assieme i programma della maggioranza all’interno di una gerarchia. Non c’è da meravigliarsi se il movimento anarchico tende storicamente verso rapporti orizzontali e la creazione del consenso come strategia che consenta di evitare la nascita di maggioranze e di strutture burocratiche di potere. Questa idea di un rapporto orizzontale ha l’obiettivo di mitigare gli effetti di particolari ideologie quando queste vengono applicate alla collettività. Al contrario una tecnocrazia, con il suo tentativo di razionalizzare i processi, ricorda un dispotismo illuminato. Certo è positivo che un processo socialmente desiderabile debba essere efficiente e consenta un risparmio di risorse, ma prima dobbiamo sapere quali sono i processi socialmente desiderabili. E non lo sappiamo.

È molto ironico il fatto che i politici di lungo corso siano i più grandi (e forse i più cinici) proponenti del credo tecnocratico. Lo stesso Aecio Neves, nonostante i suoi richiami all’amministrazione tecnocratica, è specializzato in una sola cosa: la poltrona. È stato direttore di una grossa banca pubblica, segretario alla presidenza, deputato, governatore e senatore.

Forse Aecio Neves oggi è un fantoccio della retorica che lui stesso ha messo su; un ostaggio. Perché Aecio Neves non è mai stato un tecnico; il tecnico è quello che realizza i suoi programmi politici.

Traduzione di Enrico Sanna.

Por que sou anarquista - Benjamin R. Tucker

O seguinte texto é uma tradução para o português de um artigo do anarquista americano Benjamin R. Tucker "Why I Am An Anarchist", publicado no jornal radical The Twentieth Century em 1892, editado por Hugh O. Pentecost.
Por que sou anarquista? Essa é a pergunta que o editor do semanário The Twentieth Century pediu que eu respondesse a seus leitores. Consinto; porém, para ser franco, considero-a uma árdua tarefa. Se o editor ou um de seus contribuintes tivesse apenas sugerido um motivo por que eu devesse ser algo que não um anarquista, estou certo de que não teria dificuldades em discutir tal argumento. E não seria esse mesmo fato, afinal, o melhor dos motivos por que eu deveria ser um anarquista — a saber, a impossibilidade de descobrir qualquer motivo para considerar outra denominação? Mostrar a invalidade dos argumentos do socialismo de estado, do nacionalismo, do comunismo, do imposto único, do capitalismo vigente e de inúmeras outras formas de arquismo existentes ou propostas é, ao mesmo tempo, demonstrar a validade dos argumentos do anarquismo. Ao negarmos o arquismo, podemos afirmar o anarquismo. É uma questão lógica.

Evidentemente, a presente demanda não é atendida de maneira satisfatória assim. O erro e a puerilidade do socialismo de estado e de todos os despotismos a que ele é aparentado já foram repetida e efetivamente mostrados de várias maneiras e em vários locais. Não há motivos pelos quais eu devesse atravessar esse terreno novamente com os leitores de Twentieth Century, embora sejam todas provas suficientes para o anarquismo. Algo positivo é exigido, suponho eu.

Pois não, para começar com a maior generalização possível, sou anarquista por que o anarquismo e a filosofia do anarquismo são conducentes à minha felicidade. “Ah, fosse esse o caso, é claro que deveríamos todos ser anarquistas”, dirão os arquistas em uníssono — ao menos aqueles que estejam emancipados de superstições religiosas e éticas —, “mas você não nos respondeu, pois negamos que o anarquismo nos seja conducente à felicidade”.

De fato, meus amigos? Porque não acredito quando o dizem; ou, para ser mais cortês, eu não acredito que possam afirmar tal coisa ao conhecer verdadeiramente o anarquismo.

Pois quais são as condições da felicidade? Da perfeita felicidade, muitas. Mas as primeiras e principais condições são poucas e simples. Não são senão a liberdade e a prosperidade material? Não é essencial para a felicidade de cada ser desenvolvido que ele e aqueles que o circundam sejam livres e que estejam tranquilos em relação à satisfação de suas necessidades materiais? Parece inútil negar tais fatos e, no caso da existência da negação, seria inútil argumentar. Nenhuma evidência de que a felicidade humana tenha aumentado juntamente à liberdade humana convenceria um homem incapaz de apreciar o valor da liberdade sem o reforço pela indução. E para todos que não sejam tal indivíduo, é autoevidente que das duas condições citadas — liberdade e riqueza — a primeira tem precedência como promotora da felicidade. Cada um dos fatores isoladamente seria capaz apenas de produzir uma imitação pobre da felicidade se não acompanhado do outro; porém, no balanço geral, muita liberdade e pouca riqueza seria uma situação preferível à muita riqueza e pouca liberdade. A acusação dos socialistas arquistas de que os anarquistas sejam burgueses é verdade somente até este ponto — seu horror à sociedade burguesa pode ser grande, mas seu amor à liberdade parcial vigente é maior do que a escravidão completa do socialismo de estado. De minha parte, consigo observar com maior prazer — ou melhor, menor dor — as atuais ebulientes lutas, nas quais alguns se libertam e outros não, alguns caem outros ascendem, alguns são ricos e muitos são pobres, mas nenhum está completamente acorrentado ou desesperançoso de um futuro melhor, do que consigo vislumbrar o ideal do sr. Thaddeus Wakkeman* de uma comunidade uniforme e miserável formada por um rebanho plácido e servil.

Portanto, repito, eu não acredito que muitos dos arquistas possam ser persuadidos a dizer que a liberdade não seja a condição primária da felicidade e, nesse caso, eles não poderão negar que o anarquismo, que não é senão outro nome para a liberdade, é conducente à felicidade. Sendo isso verdadeiro, eu não me furtei à questão e já estabeleci meu argumento. Nada mais é necessário para justificar meu credo anarquista. Mesmo que alguma forma de arquismo pudesse ser imaginada a ponto de criar infinita riqueza e distribuí-la com perfeita igualdade (perdoe a absurda hipótese de distribuição do infinito), o fato primordial de que esse sistema seria uma negação da condição inicial da felicidade nos obrigaria a rejeitá-lo e a aceitar sua alternativa: o anarquismo.

Embora isso seja o bastante, não é tudo. É suficiente justificativa, mas não suficiente inspiração. A felicidade possível em qualquer sociedade que não aperfeiçoe a distribuição de riqueza presente não pode ser descrita como beatífica. Nenhuma perspectiva pode ser suficientemente atraente se não prometer ambos os requisitos da felicidade — a liberdade e a riqueza. O anarquismo promete ambos. De fato, promete o primeiro como resultado do segundo.

Isso nos leva à esfera da economia? A liberdade produzirá abundância e distribuirá a riqueza de forma equitativa? Essa é a questão remanescente a se considerar. E certamente não pode ser tratada em apenas um artigo para Twentieth Century. Algumas generalizações são permissíveis, no máximo.

O que causa a distribuição desigual de riquezas? “A competição”, afirmam os socialistas de estado. Se estiverem corretos, de fato, estamos em má situação, porque, nesse caso, jamais poderemos chegar à riqueza sem sacrificar a liberdade de que precisamos. Felizmente, eles não estão certos. Não é a competição, mas o monopólio que priva o trabalho de seu produto. Desconsiderados salários, heranças, presentes e jogos, todos os processos pelos quais os homens adquirem a riqueza repousam sobre monopólios, proibições e negações da liberdade. Os juros e os aluguéis de construções repousam sobre o monopólio bancário, a proibição da competição nas finanças, a negação da liberdade de emitir moeda; as rendas advém do monopólio das terras, da negação da liberdade de uso das terras vagas; os lucros além dos salários ocorrem por conta dos monopólios tarifários e das patentes, pela proibição e limitação da competição das indústrias e artes. Há somente uma exceção, comparativamente trivial; refiro-me à renda econômica em contraste à renda monopolística. Ela não se deve a qualquer negação da liberdade, mas se trata de uma das desigualdades naturais. Provavelmente sempre existirá, embora a completa liberdade deva mitigá-la; disso não tenho dúvidas. Porém, não espero que jamais chegue ao ponto da inexistência que o sr. M’Cready antecipa tão confiantemente. Na pior das hipóteses, contudo, será um problema menor, não mais digno de consideração e comparação do que a pequena disparidade que sempre existirá devido a desigualdades de habilidade.

Se, assim, todos esses métodos de extorsão do trabalho se devem a negações da liberdade, o remédio óbvio consiste em sua realização. Destrua o monopólio bancário e estabeleça a liberdade financeira e os juros cairão, por influência benéfica da competição. O capital será liberado, os negócios prosperarão, novos empreendimentos surgirão, o trabalho será demandado e gradualmente os salários subirão até o ponto de igualdade a seu produto. O mesmo vale para os outros monopólios. Acabe com as tarifas, destrua as patentes, derrube as grades e o trabalho rapidamente tomará posse do que é seu. E a humanidade viverá em liberdade e conforto.

É isso que quero ver e em que tanto gosto de pensar. Uma vez que o anarquismo realizará esse estado de coisas, sou um anarquista. Afirmá-lo não é prová-lo, disso eu sei. Porém, o anarquismo não pode ser refutado ela mera negação. Ainda aguardo alguém que me mostre por história, fatos ou lógica que os homens têm desejos sociais superiores à liberdade e à riqueza e que o arquismo é capaz de garantir sua satisfação. Até lá, os fundamentos de meu credo político e econômico permanecerão como colocados neste breve artigo.

* Thaddeus Burr Wakeman (1834-1913) foi um conhecido positivista americano.
Benjamin R. Tucker (1854-1939) foi um dos maiores defensores do anarquismo individualista americano do século XIX e grande expositor e tradutor das obras de Proudhon nos Estados Unidos. Foi editor do jornal radical Liberty durante quase 30 anos.

ISIS e Ucrânia: O governo alegará qualquer coisa para entrar em guerra - Thomas L. Knapp

Quando liguei a TV para assistir o discurso de Barack Obama sobre seus planos para a guerra contra o chamado “Estado Islâmico”, eu esperava exatamente o que foi dito — uma verborragia pseudopatriótica, o anúncio mais subsídios ao complexo militar-industrial com um toque de mudança de regime na Síria. O que eu não esperava era a homenagem que seria prestada a uma era anterior:

“[Nós] não enviaremos garotos americanos a 14 ou 15 mil quilômetros de casa para fazer o que os próprios asiáticos deveriam estar fazendo por conta própria.” — Presidente dos EUA Lyndon Johnson, 21 de outubro de 1964.

“[Nós] não podemos fazer pelos iraquianos o que eles devem fazer por conta própria (…).” — Presidente do EUA Barack Obama, 10 de setembro de 2014.

É uma inversão curiosa: a observação de Lyndon Johnson ocorreu no final da era do “aconselhamento” no Vietnã e antes da enorme intervenção militar direta naquele país. A reprise de Obama acontece depois de quase 25 anos de gigantescas intervenções americanas diretas no Iraque e pretende fazer o caminho contrário, levando os Estados Unidos de volta a um papel de “aconselhamento”. Curioso, mas claramente não acidental.

Todos nos lembramos de como acabou o Vietnã. Após a derrota em duas guerras em terra na Ásia nos últimos 12 anos e ao consultar os livros de história da era pós-Segunda Guerra Mundial, poderíamos esperar que Obama tivesse aprendido sua lição. E estaríamos certos.

Infelizmente, a lição que ele aprendeu não é a mais óbvia (fiquem na sua, EUA!). Pelo contrário, a lição foi de que as guerras americanas não precisam ser “vencidas”. A medida de sucesso desde 1945 não era a vitória militar sobre um inimigo definido, mas os dólares entregues para os contratos de “defesa” — quanto mais deles, com durações cada vez maiores, melhor.

A perversa referência de Obama a Lyndon Johnson pode ser interpretada como uma invocação de Harry Hopkins, o braço direito do presidente americano Franklin Delano Roosevelt. Hopkins resumia a história e os objetivos futuros de todos os estados em 1938 da seguinte forma: “Gastar, gastar, gastar, taxar, taxar, taxar, eleger, eleger, eleger.” A Segunda Guerra Mundial colocou o complexo militar-industrial no meio da teia de gastos e impostos. Ele permanece lá desde então e não tem intenção de abdicar de sua posição.

Quase 65 anos depois dos primeiros tiros da Guerra da Coreia, os EUA ainda mantêm quase 30.000 tropas ao longo do paralelo 38. Quase 75 anos após as campanhas europeia e japonesa, os EUA ainda mantêm enormes guarnições e presenças navais na Europa (cerca de 70.000 tropas) e no Pacífico (80.000).

O propósito dessa mobilização perpétua? Justificar os gastos de centenas de bilhões de dólares por ano em armas, equipamento, navios, aviões, quartéis e assim por diante, todos fornecidos pelos amigos de políticos da indústria de “defesa”. Matar não é necessário, a não ser para consumir a munição e desgastar as armas para que mais possam ser compradas.

O Vietnã foi uma guerra longa e lucrativa, mas um caso excepcional, porque teve um ponto final.

O objetivo de sucessivas administrações americanas no Oriente Médio parece ser retornar ao modelo do Vietnã, com apenas algumas modificações. A mitologia do Estado Islâmico (ISIS) como uma ameaça substancial (ou mesmo, na hipérbole dos representantes do governo, “existencial”) aos EUA, combinada com seu próprio status como um fantasma amorfo e mal definido que jamais pode ser “derrotado” se presta muito bem à extensão dos 24 anos de guerras.

Qual o objetivo da administração atual na Ucrânia? Estender a vida da OTAN em vez de deixar a já inútil “aliança” militar se aposentar.

A questão principal nas questões de guerra sempre é “O estado vai poder fazer essa guerra?”, que sempre é rebatida com “O estado pode não fazer essa guerra?”.

A real pergunta que devemos nos fazer, porém, é: “Será que realmente podemos ter um estado com suas guerras perpétuas?”

A criminalização do aborto e suas vítimas - Valdenor Júnior

Jandira Magdalena dos Santos desapareceu após realizar um aborto clandestino no último dia 26 de agosto. Seu último contato com o ex-marido, Leandro Brito Reis, deixa claro que ela pressentiu o perigo que estava correndo: na última mensagem enviada do celular, ela escreveu: “Amor mandaram desligar o telefone, tô em pânico, ore por mim!”. Duas horas depois de receber esta mensagem, Leandro enviou mensagem de celular para saber de notícias, mas não houve resposta.

A tragédia de Jandira vem juntar-se à tragédia de milhares de mulheres brasileiras, que realizam abortos em condições inseguras ou perigosas porque o estado brasileiro proíbe o aborto.

Estima-se que sejam feitos 1 milhão de abortos por ano no Brasil. Na América Latina, 95% dos abortos são inseguros, o que, segundo o ginecologista e obstetra representante do Grupo de Estudos do Aborto (GEA) Jefferson Drezett, é a interrupção da gravidez praticada por um indivíduo sem prática, habilidade e conhecimentos necessários ou em ambiente sem condições de higiene.

O Conselho Federal de medicina já reconhece que o aborto de risco é a quinta causa mais comum de mortalidade materna. Muitas dessas mulheres ou morreram ou ficam com sequelas irreversíveis em seus corpos.

Algumas dessas mulheres foram estupradas, mas, mesmo a legislação permitindo o aborto neste caso, até a aprovação da lei de 2013 que obriga o atendimento em hospitais públicos, era muito difícil realizá-lo pelo SUS, que atende mulheres pobres. Sem essa lei, milhares de mulheres estavam desprotegidas, privadas de um direito básico em face da violência sexual sofrida, especialmente as mais pobres. A bancada conservadora e religiosa no Congresso pretende revogar esta lei. Fica a pergunta: é justo que esse poder de privar mulheres de direitos civis esteja nas mãos do Congresso?

Concordo com o jurista norte-americano Ronald Dworkin, em seu livro O Domínio da Vida, que afirma que as pessoas desejam proibir o aborto, porque entendem que há um valor sagrado na vida que deve ser preservado. Mas esse valor sagrado da vida é avaliado por pessoas diferentes de formas diferentes. É perfeitamente possível que a decisão pelo aborto seja tomada levando-se em conta se realmente é valorizar a vida prosseguir com uma gravidez indesejada e sem condições de suporte à futura criança. Não é o estado quem deve tomar essa decisão; quem deve pesar esta decisão moral é a pessoa que mais sofrerá as consequências dela em seu corpo e em sua mente: a mãe.

A história de Marta (nome fictício) é paradigmática. Mulher, 37 anos, pobre, com instrução apenas até o 1º grau, mãe solteira de 3 filhos pequenos, que vinha de um histórico de abandono por parte dos pais das crianças (inclusive o da gravidez que interrompeu) e estava desempregada quando, em 2010, em um ato de desespero, comprou um remédio abortivo por 250 reais, tirados de sua única fonte de sobrevivência, a pensão da filha, o qual (por ter sido aplicado incorretamente) ocasionou sangramento e fortes dores. Marta foi levada ao banco dos réus pelo crime de aborto, denunciada pela médica que a atendeu, e aceitou assinar uma confissão para obter a suspensão condicional do processo.

A bancada conservadora e religiosa do Congresso é que sabe qual deveria ter sido a decisão desta mulher nas difíceis circunstâncias em que se encontrava?

Alguns dirão que é a tradição histórica da sociedade que deve prevalecer. A mesma tradição que, conforme denunciou a anarquista individualista Maria Lacerda de Moura, consagrou a “miserável moral de coronéis, de covardes e cretinos” que condenava as mulheres desviantes às “portas da prostituição barata das calçadas, com todo o seu cortejo de misérias, de sífilis, de bordeis, de humilhações, do hospital e da vala comum”?

Jandira desapareceu. Talvez nunca saibamos o que exatamente ocorreu. Mas nós sabemos como evitar que mais Jandiras desapareçam e morram em nome de uma falsa moralidade: acabando com o poder do estado sobre os corpos das mulheres. Se necessário, por meio de ação direta: a ONG holandesa Women on Waves Foundation(Fundação Mulheres sobre as Ondas) pretende oferecer a opção do aborto a mulheres que moram em países onde a prática é ilegal, em uma embarcação em águas internacionais, onde as leis de criminalização do aborto não vigem.

Precisamos de menos espaços de poder para oprimir as mulheres e mais autonomia feminina para controlar seus corpos e tomar importantes decisões morais por si mesmas, como aquelas relativas à gravidez. Caso contrário, as mulheres brasileiras não estarão seguras contra a opressão social e a agressão estatal.

A posse da liberdade: A economia política de Benjamin R. Tucker - David S. D'Amato

A economia política de Benjamin Tucker representa uma condensação de suas maiores influências, sintetizando o trabalho de pensadores radicais como Josiah Warren, William B. Greene, Ezra Heywood e Lysander Spooner para chegar a um anarquismo maduro e completo. De Heywood, Tucker extraiu sua análise dos males da renda (rent), dos juros e dos lucros, “seguindo os dizerem que Ezra Heywood gravou em sua escrivaninha em letras garrafais: ‘juros são roubo, rendas são saques e os lucros são apenas outro nome para pilhagem'”.1 Josiah Warren deu a Tucker a convicção na soberania individual, uma hostilidade em relação a toda tentativa de “reduzir o indivíduo a uma mera peça dentro de uma engrenagem” e à tentativa de chegar a reformas através de “combinações” coercitivas. Para a reforma de livre mercado do sistema monetário e bancário, Tucker aprendeu com William B. Greene, cujo trabalho articulava um esquema bancário baseado na emissão livre e aberta de meios circulantes. Foi Greene que, em 1873, introduziu ao jovem Benjamin Tucker o trabalho de Pierre-Joseph Proudhon, conhecido pessoal de greene e o primeiro a chamar a si mesmo de anarquista.2 Greene ainda estimulou Tucker a empreender a primeira tradução para o inglês da obra O que é a propriedade? de Proudhon, um trabalho publicado pela Co-operative Publishing Company de Ezra Heywood. Em Tucker, todas essas influências se uniram e formaram um só movimento encabeçado por seu jornal Liberty.

É interessante notar que a carreira de Tucker na política radical continuava enquanto ele trabalhava para publicações mais convencionais. Em 1943, num artigo para o The New England Quarterly, Charles A. Madison observava “o respeito mútuo entre Tucker e seus empregadores” no Daily Globe, apesar da defesa determinada de Tucker do anarquismo em uma época que testemunhava campanha de “intensidade histérica” contra esse pensamento. É inegavelmente difícil imaginar um jornal de qualquer tamanho ou reputação que abrigasse alguém abertamente anarquista hoje em dia no seu corpo editorial. Apesar das pretensões atuais de abertura e liberalidade, é quase certo que a elite intelectual e literária atualmente impede críticas e questionamentos a suas ortodoxias preferidas e às políticas do status quo muito mais do os letrados da segunda metade do século 19. Tucker foi respeitado por seus colegas do Globe por não menos que onze anos, até mesmo quando ele passou a se envolver ainda mais no ativismo radical, desde sua ajuda a Ezra Heywood com a publicação de The Word até a edição de seu próprio Radical Review. Mais tarde, após começar a publicação do Liberty, Tucker trabalhou como editor para a Engineering Magazine em Nova York, “se recusando a escrever artigos que pudessem comprometer seus princípios anarquistas”.3

Na primeira edição de Liberty em 1881, Tucker anunciava a raison d’être do jornal e suas visões políticas e econômicas ao escrever que “o monopólio e os privilegiados devem ser destruídos, as oportunidades devem ser fornecidas e a competição estimulada”. Ainda assim, como Proudhon, de quem Tucker tirou tantas ideias sobre a moeda e a reforma bancária, Tucker defendia que os vários arranjos econômicos a que se opunha deveriam “permanecer livres e voluntários para todos”. Com os portões da competição abertos para todos e as “forças perturbadoras”4 dos privilegiados abolidas, essas formas de exploração se tornariam, de acordo com ele, praticamente impossíveis: “Se o poder de usura fosse estendido a todos os homens”, como Tucker alegava que deveria, “a usura devoraria a si própria, por sua natureza”. O papel do estado, assim, era o de isolar os poucos detentores privilegiados do capital, que vivem “luxuosamente com o suor do trabalho de seus escravos artificiais”, dos efeitos salutares da competição.

A coerência de Tucker e sua habilidade em expor os absurdos dos poderes político e econômico têm muito a ensinar ao movimento libertário atual. Se estivesse vivo hoje em dia, Tucker veria privilégios, subsídios corporativos e interferências à liberdade em todo lugar. Os relacionamentos econômicos atuais não são mais naturais ou inevitáveis que as condições da velha escravidão, embora seus apologistas insistam que sua própria existência seja prova de sua justeza. Tucker era um economista político visionário porque imaginava que as coisas podiam ser diferentes, denunciando as explicações improvisadas dos economistas liberais e desafiando-os a levar suas ideias liberais — que cresciam em popularidade — a seus limites lógicos. “O anarquismo genuíno é consistente com o manchesterismo”, dizia ele em uma citação famosa. Para Tucker, a política e a economia eram inseparáveis, as questões de uma necessariamente tinham implicações sobre a outra; ele considerava o capitalismo um sistema de exploração criado pelo estado — ou seja, pela agressão ou pela força contra o indivíduo soberano. As ideias políticas trabalhistas de Tucker, porém, eram ainda distintas — e talvez diferentes das ideias atuais do movimento trabalhador radical — porque rejeitavam os capitalistas sem advogar a propriedade ou organização coletiva do capital, identificavam a exploração sem condenar a competição e defendiam os trabalhadores sem necessariamente denunciar os trustes (ou “combinações industriais”), tendo uma relação tépida com os sindicatos.

Tucker argumentava que os esforços para obstruir ou proibir qualquer tipo de combinação ou associação voluntária eram tentativas autoritárias de exercer controle, intoleráveis ao anarquismo, não importando suas boas intenções. Ele não via nada de essencial ou necessariamente errado com a venda do trabalho em troca de um salário — chegando ao ponto de alegar que o anarquismo socialista não “pretendia abolir salários, mas garantir para todo assalariado seu salário integral”. O socialismo de Tucker era diretamente baseado na noção de que o trabalho deveria ser pago com seu produto completo; o fato de que o trabalho não era pago era, efetivamente, todo o problema. A propriedade governamental dos meios de produção defendida pelo socialismo de estado não era uma forma de atingir esse objetivo, mas era simplesmente uma nova forma de escravização parecida com a antiga. Em última análise, o estado seria sempre uma instituição composta pela classe dominante e a serviço dessa classe.

A economia de Tucker, além disso, rejeitava distinções fáceis e superficiais, como, por exemplo, a diferenciação arbitrária e não-sistemática entre o capital e o produto5 e, como observado acima, entre política e economia. Qualquer consideração integral do “problema industrial” não poderia depender simplesmente de uma análise das leis das trocas, como se essas leis operassem em um vácuo, independentemente das realidades legais e políticas. Como uma das maiores influências de Tucker escreveu, a “economia política, até hoje, tem sido pouco mais que uma série de engenhosas tentativas de reconciliar as prerrogativas de classe e o arbitrário controle capitalista com os princípios das trocas”. O erro central da economia política burguesa na época de Tucker é idêntico ao erro principal do libertarianismo atual — sua ignorância crítica da existência de inúmeras e constantes violações dos princípios de livre mercado que são expostos. Tanto na época quanto atualmente, os economistas de livre mercado afirmam que que as questões políticas e econômicas devem ser tratadas em conjunto e que os direitos econômicos são direitos políticos para, logo em seguida, mudarem de ideia e passarem a discutir as condições econômicas e os relacionamentos atuais como se fosse consequências legítimas de trocas e formas de propriedade de mercado.

A precisão analítica de Benjamin Tucker não era sujeita tão facilmente a confusões a ponto de permitir que ele fosse ludibriado pelos defensores do capitalismo e pensasse que os relacionamentos de livre mercado seriam similares aos relacionamentos dentro do capitalismo. Tucker não acreditava que a sujeição acachapante dos muitos pobres aos poucos abastados proprietários havia surgido a partir de um laissez faire verdadeiramente livre. Como observa “An Anarchist FAQ”, “embora uma anarquia individualista fosse ser um sistema de mercado, não seria um sistema capitalista”. Tucker nunca recuou de sua defesa da competição ou viu necessidade de diluí-la. Ele também nunca admitiu que a exploração era possível sem agressão ou invasão, ou aceitou que o comércio equitativo e a justiça para o trabalhador só poderiam ser alcançados através de reformas legislativas. Sua total ausência de fé em qualquer reforma legal ou governamental às vezes criava um abismo entre as ideias de seu jornal Liberty e o resto do movimento trabalhador, embora ele sempre reconhecesse que o anarquismo e o socialismo fossem “exércitos que se sobrepõem”. De fato, Tucker oferecia o que eu ainda considero a melhor definição do socialismo — ou talvez como a melhor versão do socialismo —, “a crença de que o próximo passo mais importante para o progresso é uma mudança no ambiente do homem de forma que sejam abolidos todos os privilégios que os detentores da riqueza possuem, retirando assim seu poder antissocial para compelir o pagamento de tributos”. Tucker, portanto, não presumia posições necessárias contra alvos populares do movimento trabalhador como o trabalho assalariado ou mesmo os grandes trustes. Alegava que, contanto que o princípio anarquista da igual liberdade fosse sempre observado, “não faria diferença se os homens trabalhassem para si mesmo, se fossem empregados ou empregassem os outros”. A riqueza sem o trabalho — ou seja, a renda, os juros e os lucros — eram os fenômenos econômicos a que os anarquistas deveriam se opor e eles, segundo Tucker, dependiam sempre da agressão.

É um tanto irônico que as escolas de livre mercado que mais alto trombeteiam o individualismo metodológico e sejam as mais céticas ao empirismo desprezem até mesmo a menor das possibilidades de que a completa liberdade de trocas e comércio não leve a um ambiente que seja reconhecível como capitalista. Dado que a economia existente está muito longe de um mercado verdadeiramente livre, nós devemos nos perguntar o que os deixa tão certos de que os anarquistas individualistas como Tucker eram apenas néscios economicamente ignorantes. Não precisamos depender de qualquer teoria do valor-trabalho para concluir com segurança que as desigualdades e concentrações de riqueza dependem principalmente dos privilégios legais a que os portadores do estandarte do laissez faire afirmam se opor. Os anarquistas individualistas, além disso, entendiam a importância teórica da utilidade marginal muito bem, como já observei em outra ocasião. Ao contrário da caricatura de sua visão, a teoria do valor-trabalho que articulavam era perfeitamente reconciliável com a teoria subjetiva do valor e pretendia explicar algo diferente e mais abrangente do que a simples proposição de que tudo vale apenas o que alguém está disposto a pagar — o que, evidentemente, é impossível refutar. A crítica importante e substantiva contida na economia política de Tucker é descartada com frequência por depender de uma falácia econômica já desacreditada, sem considerar seus muitos argumentos e implicações. A coerência de princípios era uma das preocupações principais de Benjamin Tucker e do jornal Liberty e é algo que recai sobre os individualistas de esquerda e membros do C4SS hoje em dia. Tucker sugeria que a “anarquia pode ser definida como a posse da liberdade por libertários — isto é, por aqueles que conhecem o significado da liberdade”. Essa questão, o significado da liberdade, é o que nós, enquanto anarquistas, tentamos responder. Para muitos, a vida e o trabalho de Benjamin Tucker têm sido o norte dessa jornada, uma referência e inspiração perene.

Notas:

1 Martin Blatt, “Ezra Heywood & Benjamin Tucker.”

2 Em uma edição de 1887 de Liberty, Tucker escreveu “[Graças] ao coronel Greene, leio a discussão de Proudhon com [Frédéric] Bastiat sobre a questão dos juros e seu famoso O que é a propriedade? e grande foi minha surpresa ao encontrar dentro desses trabalhos, mas apresentados em termos muito diferentes, ideias idênticas às que eu já havia aprendido com Josiah Warren e que, desenvolvidas independentemente por esses dois homens, serão tão fundamentais em mudanças sociais futuras quanto foi a lei da gravidade em todas as revoluções das ciências físicas que se seguiram à sua descoberta — refiro-me, naturalmente, às ideias de liberdade e equidade.”

3 Wendy McElroy, “Benjamin Tucker, Liberty, and Individualist Anarchism.” Nota de rodapé 6.

4 John Beverley Robinson, Economics of Liberty.

5 “Proudhon ridicularizava a distinção entre o capital e o produto. Mantinha que capital e produção não diferentes tipos de riqueza, mas apenas condições alternativas ou funções da mesma riqueza; que toda a riqueza passa por transformações incessantes de capital a produto e de produto de volta a capital, em um processo interminável; que o capital e produto são termos puramente sociais; que o que é produto para um homem imediatamente se torna capital para outro, e vice versa; se existisse apenas uma pessoa no mundo, toda a riqueza, para ele, seria ao mesmo tempo capital e produto (…)” — Benjamin R. Tucker.

A raiz da desigualdade: o mercado ou o estado? - David S. D'Amato

No começo de setembro, a agência Reuters reportava uma pesquisa do banco central dos Estados Unidos, o Federal Reserve, que mostra um aumento da disparidade de riqueza e renda no país. “Todo o crescimento de renda ficou concentrado entre os que mais ganham (…), com os 3% mais ricos concentrando 30,5% de toda a renda”, afirma a Reuters.

A pesquisa do Fed sem dúvida será desconcertante tanto para aqueles da esquerda e da direita que incorretamente consideram os Estados Unidos a “terra da liberdade”, um lugar de oportunidades em que qualquer pessoa pode chegar a seus objetivos com um pouco de trabalho árduo. De fato, os dados parecem mostrar uma realidade muito diferente dessa percepção rósea, uma realidade em que as conexões entre as elites empresariais e o mundo político garantem que os ricos se tornem mais ricos e os pobres mais pobres.

Quando se deparam com esse cenário desolador das estruturas de classe e econômicas americanas, aqueles que realmente se perturbam com a desigualdade de renda tendem a rapidamente culpar o “livre mercado” e a competição desenfreada que colocam os lucros acima das pessoas. Mas o que o livre mercado realmente é e se temos um em vigência atualmente são questões separadas que devemos analisar para explicar a desigualdade americana. A esquerda pode se surpreender ao ver que a tradição radical socialista inclui toda uma espécie de libertários antiestado e pró-livre mercado.

Ao conceder que mercados e a competição, em si, sejam parte do problema social a ser resolvido, a esquerda desnecessariamente se coloca em posição de desvantagem, cedendo à crença falsa de que a elite dominante capitalista chegou a sua posição de maneira justa. Afinal, se estamos sob um livre mercado genuíno, o que poderíamos contestar?

A maioria dos anticapitalistas, assim, compartilha um mito fundador com os piores apologistas do capitalismo inexistente e de suas inúmeras desigualdades. Ambos os grupos mantêm que as economias atuais são essencialmente livres. Anarquistas de mercado como Ezra Heywood e Benjamin Tucker não acreditavam nessa inverdade — de que o trabalho não seria capaz de competir com o capital em um ambiente de igualdade e justiça.

Ao contrário, argumentavam eles, as características mais comuns e desiguais do capitalismo eram, na verdade, frutos envenenados e afrontas a princípios de livre mercado geralmente aceitos. Remova as muletas do estado aos grandes negócios e os muitos privilégios que debilitam os trabalhadores e as trocas verdadeiramente voluntárias e a cooperação dissolveriam o capitalismo que conhecemos.

Como escreveu Ezra Heywood em The Great Strike: “A ‘sobrevivência do mais apto’ é beneficamente inevitável; o capitalista é impotente contra o trabalho, a não ser que o estado (…) interfira para ajudá-lo a capturar e depenar suas vítimas. O velho argumento do despotismo de que a liberdade é insegura reaparece na ideia incorreta de que a competição é hostil ao trabalhador.”

Heywood dava uma lição à esquerda americana contemporânea: de que o capítalismo é um sistema de roubos de terra, de barreiras regulatórias e legais à competição, de monopólios de propriedade intelectual e de subvenção aos grandes negócios na forma de subsídios diretos e contratos governamentais. Onde fica o “livre mercado” no meio disso tudo?

O anarquismo de mercado é uma forma de descentralismo, um socialismo libertário que vê as trocas voluntárias e a cooperação como soluções para a ampla desigualdade contra a qual lutamos atualmente. Políticos e executivos gostam do sistema que temos nos Estados Unidos; dependem dele e o sistema depende desses indivíduos. O resto de nós, ao contrário das elites políticas econômicas, não se importa em trabalhar para viver e não está pedindo privilégios legais. Nós só desejamos a liberdade para perseguir projetos e alcançar nossos próprios objetivos. Esse tipo de livre mercado oferece uma saída para as desigualdades atuais, não um incentivo a elas.